Renée Gagnon e a série «Musseques de Luanda»
Quando, em novembro de 1974, a Fundação Calouste Gulbenkian concedeu à artista de origem canadiana, Renée Gagnon (Montreal, Canadá, 1942), uma bolsa de estudo de 12 meses, prorrogada por mais seis meses, com recomendações de prudência evidentes, para desenvolver o «trabalho de pesquisa documental e plástica sobre o tema Paliçadas dos Musseques de Luanda»[1], a artista já tinha dois anos antes iniciando os seus estudos sobre os musseques e tinha vivido e exposto[2] em Luanda e no Lobito, deixando Angola em março de 1974. Não era uma novidade e um risco inocente. Mas a vontade de regressar a Luanda e entrar nos musseques livremente era o seu principal objetivo. Renée Gagnon regressou bolseira a Angola em plena guerra civil.
Num registo detalhado de ruas e ruelas, caminhos e becos, bem como de janelas, portas, paliçadas, ou mesmo no interior dos próprios musseques, Renée registou, através de milhares de fotografias, verdadeiros documentos sociológicos, mas também artísticos, o uso de motivos geométricos e cor nas paliçadas (paredes vazias), e a decoração pormenorizada destas frágeis construções que fascinaram a artista.
Os musseques de Luanda eram construídos com uma grande diversidade de materiais recuperados que lhe davam consistência e resistência, mas, ao mesmo tempo, um ar frágil e precário: tonéis de vinho, bidons, caixotes de madeira de cerveja, chapas de artes gráficas, cartão, papel, plástico, ramos de árvores, tecidos, paus e terra misturados com argila, cimento, areia e algum tijolo.
Em maio de 1980, no catálogo da exposição Musseques. Pintura e Gravura Renée Gagnon, exposição realizada no Museu Nacional de Luanda, Nuno Portas refere-se a este trabalho sobre os musseques não apenas como composições verdadeiramente abstratas, mas também como registo e memória das «marcas de um povo, da sua condição e da luta pela libertação em imagens (…); as suas memórias arquitectónicas, memórias da extraordinária invenção (ou engenho) dos construtores anónimos do pau a pique, dos entrançados de latas, das tábuas pregadas».[3]
A série completa de onze serigrafias sobre os musseques, criadas por Renée Gagnon de 1976 a 1980, pertence, desde meados do ano passado, à coleção do Centro de Arte Moderna. O conjunto foi praticamente todo adquirido no ano transato – a Coleção do CAM apenas detinha a primeira obra da série intitulada Musseques. Todas as serigrafias, realizadas pela artista, que já então dominava bem esta técnica, foram impressas na Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses e nas oficinas do serígrafo António Inverno, são elas: Muro da Alegria (1976), Elogio do Lixo (1976), Ordem para a Guerrilha (1977), Muro da Dança (1978), Lata, Tábua e Esteira de 1978, estas três últimas representam os materiais de base dos musseques; Depois da Noite (1978), Porta para a Serenidade e Criar (1980), esta última sobre um poema de Agostinho Neto.
Nestas obras há um trabalho da técnica serigráfica, onde a cor ganha força e prevalência, vibração e preenchimento quase total do suporte: são as cores quentes que sobressaem, vermelhos, amarelos, laranjas, rosas, mas encontramos ainda o verde, o azul, o preto, o cinza e o branco, que delimitam, preenchem, desenham, realçam pormenores dos musseques, ou dos próprios materiais ali utilizados. Contudo, surge aqui, igualmente, o reflexo do povo que construiu os musseques. Em 1971, a população dos musseques era de 200 mil habitantes e localizava-se em zonas dentro do centro da cidade de Luanda. Era sobretudo a população rural que se deslocava para a cidade e que ocupava esta área.
A origem da palavra musseque vem do kimbundo, dialeto falado nas regiões mais próximas de Luanda, e significa areia ou terra vermelha. «Esta era a descrição mais comum da condição geológica que caracterizava o tipo de zonas onde se localizaram os primeiros musseques»[4]. Os tipos mais comuns das habitações destes bairros, segundo o material de construção, eram as casas de barro, as casas de pau-a-pique, as casas de adobe e as casas de madeira e zinco. As condições de habitabilidade e higiene eram bastante precárias, como a própria Renée Gagnon descreve com algum detalhe num artigo publicado em 1976 na Colóquio-Artes[5], acompanhado de algumas das suas fotografias a p/b, que continuam inéditas, por publicar ou expor.
[1] Proc. C. 200/73 de 26 de novembro de 1974. Arquivos Gulbenkian.
[2] Em março de 1973, mostrou na Câmara Municipal do Lobito as primeiras paliçadas.
[3] Musseques. Pintura e Gravura Renée Gagnon, Luanda, Salão Internacional, 1980, s/p.
[4] Andrea Bettencourt, Qualificação e reabilitação de áreas urbanas críticas. Os musseques de Luanda (tese de mestrado em Arquitectura), Lisboa, FAUTL, julho 2011.
[5] Renée Gagnon, «Les Musseques de Luanda ou la civilisation du déchet version africaine», Lisboa, Colóquio-Artes, 18, n.º 26, fev. 1976, p. 43-51.
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