Obras de Fernão Cruz integram Coleção do CAM
As pinturas do artista têm uma componente lúdica – jogos de palavras e formas, recortes, plasticidade – e uma escala considerável. O mundo pode ser essa festa em que um desenho contínuo se anima nos ecrãs, em que uma surrealidade onírica descomprometida e caótica se reveste de efervescência, metamorfose, escorrência, surpresa, absurdo, contorção e inconsequência. Pode ser um lugar insuflado em que pairam e se suspendem luminescências, farrapos de consciência, projeções momentâneas, brasões e amuletos dessacralizados, arte Pop, escrita breve, sinais de ansiedade, volumes aplanados, fantasias passageiras, caprichos inesperados. A cor é fulgurante, apesar das cavernas, das portas, dos recintos fechados e dos buracos de fechadura. Luzes, lanternas e fósforos afugentam a escuridão. Numa destas telas, A gruta e o espião, acedemos a um reservatório de máscaras, espectros ou fantasmas. Sobre o xadrez, as malhas, as paredes, os mapas e territórios recortados de muitas superfícies como esta, surgem elementos isolados e surpreendentes.
A figura não está ausente, mas é um lugar patético de solidão, queda, desaparecimento, ferida ou humor negro. No palco, por entre as cortinas que se abrem numa destas pinturas, Cair em palco, vemos o ser em queda por excelência, a marioneta em cujos pés e mãos desmesurados adivinhamos uma deformação trágica, metafísica. «Não pediste para nascer e és obrigado a cair num palco sem audiência», diz o artista, referindo-se à vida e a alguns dos seus trabalhos. No grande díptico, O eterno monólogo, em que uma camada de tinta quase esconde outra que representa um muro, uma cadeira e um banco – isolados nas bolhas de espaço respetivas – evocam as conversas surdas de uma terapia infindável, de um amor mal explicado, de uma ausência dolorosa.
Os seres adquirem uma condição esvoaçante e suspensa; as figuras são desproporcionadas e recortadas em contextos imprevisíveis. As mãos agigantam-se, ameaçadoras ou assustadas.
Os objetos escultóricos do artista, em bronze, são apontamentos mais ou menos caprichosos daquilo que atravessa a correria concreta dos dias, mas também da fantasia que os assola. Uma corda de saltar foi congelada no seu movimento e assinala a ausência da figura que a segurava. As mãos caídas sublinham a sua própria importância recorrente e tornam ainda mais desconcertante aquele lugar vazio (Esqueleto para nada). A enorme mão azul que segura um cigarro e que surge por de trás de um simulacro de parede entra em simbiose formal com o fumo cristalizado num contorno derivativo e, também ele, orgânico (Assalto).
Salvífico ou terrível, anjo, ganso ou Simürg: todos se cruzam num mesmo arquétipo aglutinador, manifestado por essa ave desmesurada que vem buscar despojos no espaço escuro da instalação Aceitação. Despedida. O ser esculpido que nela nos remete para o plano humano capitulou e partiu. Um corpo sem vida é um habitáculo vazio que já não queremos olhar, por muito que um foco intenso nos obrigue. A cena é violentamente animal e, no entanto, ou por isso mesmo, poderosamente simbólica.
Um trabalho, diz Fernão Cruz, «tem de ser capaz da sua possível autodestruição». Um trabalho, qualquer trabalho, está em movimento contínuo desde que começa a ser empreendido.