Doação de obras de Espiga Pinto

Em 2020, o Centro de Arte Moderna recebeu uma importante doação de mais de 50 obras do artista Espiga Pinto, realizadas entre as décadas de 1960 e 1980.
30 ago 2023

«Pés na terra, cabeça no cosmos» – assim definiu José Manuel Espiga Pinto (1940-2014) a sua obra. Recentemente, o CAM recebeu uma doação de desenhos, cadernos de estudos, esculturas, gravuras e um livro-catálogo da sua autoria, produzidos entre as décadas de 1960 e de 1980[1].

Natural de Vila Viçosa, Espiga Pinto frequentou a Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa entre 1957 e 1960, realizando a sua primeira exposição individual em 1958, na Galeria Pórtico. Em 1960 regressou ao Alentejo como docente na Escola Industrial e Comercial de Estremoz, onde permaneceu até 1966. Entre 1979 e 1989 foi também professor no IADE, em Lisboa.

O facto de ter nascido no Alentejo torna-se determinante nesta fase inicial da sua produção, caracterizada por David Santos como um «neorrealismo tardio»[2]. Nas palavras do próprio artista, tomara a decisão de «Cantar o Alentejo», revisitando os «campos, o trabalho, os camponeses, camponesas e cavalos, numa simbiose entre a dureza do trabalho de sol a sol e a vivência da tradição do vestuário, das feiras, dos lagares de azeite, das festas populares, religiosas-pagãs, as festas do acabamento da apanha da azeitona…»[3].

Mais tarde, este campo de referências cruza-se com uma tendência para a abstração. Observa-se, então, uma crescente importância da geometria na definição da estrutura de obras que aspiram a uma representação simbólica de cosmografias mais amplas.

Apesar de esta caracterização da sua produção ser acertada na sua generalidade, esta doação permite problematizá-la. As obras datadas da década de 1960 apresentam, na sua maioria, temáticas do mundo rural alentejano com afinidades neorrealistas, mas não só a sua expressão formal varia, como observamos já a presença da abstração.

Obras como Sem título, 1960 (inv. 20DP4647), ou Sem título, 1966 (inv. 20DP4648), exploram o tema da camponesa com uma expressão plástica bastante próxima de algum modernismo português mais convencional.  

José Manuel Espiga Pinto, Sem título, 1960. Inv. 20DP4647
José Manuel Espiga Pinto, Sem título, 1966. Inv. 20DP4648

Já obras como Picadeiro, 1963 (inv. 20GP2846), Sem título, 1962 (inv. 20GP2845), Sem título, 1963 (inv. 20GP2847), Brincando com o «Cavalo de Tróia», 1963 (inv. 20DP4667), aludem às mesmas temáticas rurais, mas numa linguagem muito própria de Espiga Pinto: uso de uma única cor, definição das formas pela mancha entrecortada com o vazio do fundo, uma certa jocosidade ou ironia na caracterização das personagens e situações, potenciação da expressividade do fundo – seja pelo que concorre para a definição da forma, seja pelo espaço de respiração que imprime à composição.

José Manuel Espiga Pinto, «Brincando com o “Cavalo de Tróia"» (pormenor), 1963. Inv. 20DP4667
José Manuel Espiga Pinto, «Picadeiro» (pormenor), 1963. Inv. 20GP2846

Uma perspetiva jovial sobre as situações figuradas e o uso da expressividade da mancha em paralelo com o vazio do fundo são características muito particulares do trabalho de Espiga Pinto deste período. Essa marca autoral torna-se muito evidente num álbum de fotografias de desenhos e pinturas que envia para a Fundação Calouste Gulbenkian em 1965, na qualidade de relatório sobre o apoio que a Fundação lhe concedera durante três meses.

Por outro lado, a presença da geometria na estruturação das composições (que se torna cada vez mais evidente na década seguinte) começa já a insinuar-se nos anos de 1960: nesta doação, a mesma temática rural de animais e festividades surge em composições mais geométricas e tendencialmente simétricas, com figuras mais estáticas e hieráticas, em que o artista experimenta já um uso controlado da cor. São disso exemplo obras como Festa Mordama, 1962 (inv. 20DP4649), Festa da Madanela e Mordama, 1963 (inv. 20DP4650), Festa Mordama, 1963 (inv. 20DP4651) ou Festa da «Mordama» com «Águia que Voas Tão Alto», 1967 (inv. 20DP4662).

Aliás, a experimentação da abstração em Espiga Pinto é simultânea à sua prática da figuração. Nessa mesma década de 1960, não só produz serigrafias de um abstracionismo geométrico (Sem título, 1965, inv. 20GP2843; Sem título, 1965, inv. 20GP2844) como realiza um painel abstrato de grandes dimensões para decorar a sede da Fundação Calouste Gulbenkian, do qual podemos observar alguns estudos de 1967 nesta doação (os quais se juntam a uma maquete do mesmo, já pertencente à Coleção do CAM). Este painel parece anunciar as aspirações da sua produção na década seguinte.

José Manuel Espiga Pinto, «Sem título», 1966. Inv. 20GP2843
José Manuel Espiga Pinto, «Sem título», 1969. Inv. 20GP2844
José Manuel Espiga Pinto, «Estudo painel policromado Fund.ação Gulbenkian», 1967. Inv. 20DP4653
José Manuel Espiga Pinto, «Estudo mural Gulbenkian», 1967. Inv. 20DP4655

Podemos assim afirmar que, não obstante ser tentador enquadrar a produção inicial de Espiga Pinto num neorrealismo tardio devido à sua temática, o artista experimentou várias linguagens em simultâneo, cruzando figuração – em si mesma diversa – e abstração. Além disso, se a temática camponesa o aproxima do neorrealismo, a sua expressão plástica afasta-o.

Não significa isto que a linguagem daquilo a que podemos historicamente chamar de neorrealismo tenha sido uniforme, mas na sua produção perpassa uma necessidade de denúncia da injustiça e da desigualdade que frequentemente se traduz numa certa seriedade ou angústia. Ora, nas obras de temática rural de Espiga há uma ironia e jocosidade que se afastam desse espectro emocional. O artista representa o mundo rural que lhe é familiar, sobretudo na sua expressão mais alegre e festiva, com humor e ironia.

A produção desta década pode assim suscitar dois tipos de questões interligadas: se tentarmos abdicar do epíteto de «tardio» que tantas vezes acompanha as avaliações das histórias da arte periféricas (traduzindo assim um seu complexo de inferioridade face aos cânones historiográficos centrais e a aceitação passiva do compasso por eles imposto), que significado histórico pode, ainda assim, esta produção reclamar? Numa década em que a arte nacional e internacional seguia já definitivamente outras formulações (da pop art ao nouveau réalisme, passando pela post-painterly abstraction, pelo conceptualismo ou pela op art), que atualidade pode esta produção de Espiga Pinto sugerir? Será possível reconhecer uma resistência, alinhada com as contraculturas emergentes, ao desenvolvimento centrado no crescimento urbano e numa lógica de produção capitalista? Uma apologia de um tipo de comunidade e de coesão social por contraponto à crescente atomização e individualismo das sociedades urbanas? Um elogio de um regresso à ruralidade, alinhado com a consciência ecológica emergente, como alternativa a um progresso tecnológico e científico que revelara já a sua potencialidade de catástrofe? Uma resistência à imagem idealizada do povo rural criada pela propaganda estado-novista?

A experimentação de linguagens e meios prossegue na produção de Espiga Pinto na década de 1970. A geometria e a abstração conquistam efetivamente outra dimensão nas suas obras, mas é sobretudo uma nova reflexão sobre o espaço e sobre as potencialidades simbólicas da arte no espaço público que ocupa o artista.

Foram anos prolíficos na criação de cenários e figurinos para o Ballet Gulbenkian, dos quais podemos observar alguns estudos nesta doação[4]. Normalmente realizados a guache branco sobre cartolina preta, existem estudos para Bailado Concertino, de 1976, para Enigmas de Édipo, de 1977, para Bailado Espirais, do mesmo ano, bem como um estudo para um figurino do bailado Da vida e da morte de uma mulher só, realizado em 1982. Também aqui nos damos conta da tendência abstrata das cenografias, com planos e formas curvas, esféricas e espiraladas que, mais adiante, reencontraremos noutras criações.

A sua atividade na área da cenografia – que também desenvolveu para o Teatro Experimental de Cascais entre 1969 e 1971 – será reconhecida com prémios: em 1970 ganha o Prémio da Imprensa para os cenários do Ballet Gulbenkian e em 1973 é distinguido com o Prémio da Bienal de São Paulo para os cenários e figurinos do bailado Dulcineia da mesma companhia.

Esta reflexão plástica sobre o espaço expandir-se-á para outras áreas da produção de Espiga Pinto ao longo dos anos de 1970. Em serigrafias como Terra Marcada N.º 2, de 1972, ensaia uma representação cosmográfica do mundo numa linguagem geométrica, abstrata e simbólica.

José Manuel Espiga Pinto, «Terra Marcada N.º 2», 1971. Inv. 20GP2848
José Manuel Espiga Pinto, «Terra Marcada N.º 1», 1972. Inv. 20GP2849

Porventura, as criações de cenários potenciaram uma expansão da bidimensionalidade do suporte dos desenhos, pinturas e gravuras para uma ocupação tridimensional e performática do espaço. Num caderno de estudos realizado entre 1971 e 1977, observamos projetos do que parecem ser aparelhos para uma comunicação artístico-poética cósmica. Nos apontamentos que acompanham estes desenhos, lemos «caleidoscópio onírico», «ouvido onírico» com «células sensíveis ao som» e apercebemo-nos de que Espiga Pinto imaginava a sua concretização em materiais como plexiglas, bronze, cobre, lâmpadas, cordas, poliéster, madeira, espelho, rolamentos de metal e pequenas esferas de cor.

José Manuel Espiga Pinto, «Caderno de estudos», 1971. Inv. 20DP4652

Não obstante o artista descartar em alguma página estes seus esboços como «Projecto que decididamente não serve para nada», parecem, todavia, máquinas para sonhar um outro tipo de comunicação (à semelhança da «cosmolinguagem» que Costa Pinheiro inventava pela mesma época) e, provavelmente, terão sido esboços necessários para conceber alguns desenhos com outra finalização, também integrantes desta doação. Nesse conjunto de desenhos surgem representações de aparatos oníricos com afinidades com o universo da ficção científica. Realizados em 1971, empregam guache branco sobre cartolina preta e apresentam títulos como Lanterna Onírica, Caixa Onírica com Mapa, Onírica Dupla, Onírica 2ES-1BO-PEN-1/2RO e Onírica Autómata. Alguns destes desenhos serão concretizados tridimensionalmente (sendo assim estudos para esculturas, projetos de intervenção urbana e performances), tal como podemos observar em algumas vistas de exposições reunidas no blogue do autor (a Lanterna Onírica surgirá com alguma recorrência) e em registos audiovisuais de instalações e performances do artista.

A produção de Espiga Pinto na década de 1970 parece ter sido dedicada à criação de uma linguagem associada a espaços mais amplos do que a imagética do Alentejo rural da década precedente: começa a criar representações do mundo e do cosmos, a produzir um universo simbólico de intervenção no espaço urbano e a inventar uma linguagem para comunicar cosmicamente através da arte (dois desenhos doados intitulam-se, precisamente, Para uma Segunda Mentacosmunicação). O Estudo para Egotemponírico de 1972, presente nesta doação, articula-se com um happening (como o próprio lhe chamava) que realiza no Porto nesse mesmo ano, na Casa da Carruagem, com o apoio da Galeria Alvarez[5]. Nos filmes que ficaram desta instalação e performance, reconhecemos a concretização tridimensional de alguns destes estudos: esculturas no jardim conduzem ao interior da casa, onde existem registos fotográficos e objetos tridimensionais. Um grupo de crianças lança uma esfera de grandes dimensões para o jardim; Espiga realiza uma performance no exterior; no final, um grupo de participantes acompanha o artista numa caminhada até ao mar da praia de Valadares, ao qual entrega uma esfera da sua criação.

Em 1973-1974, Espiga Pinto recebe uma bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian para prosseguir as pesquisas sobre intervenções no espaço urbano na Suécia e em França. Os focos das suas investigações sobre o espaço – cósmico-simbólico, performático ou urbano – são observáveis no livro que encontramos nesta doação (e do qual os Arquivos Gulbenkian possuem mais três exemplares). Trata-se de um catálogo de uma exposição do artista realizada em 1973 na Galeria Alvarez (no Porto) e na Galeria Quadrante (em Lisboa), no qual encontramos uma síntese do léxico da sua linguagem plástica de então. Nesse catálogo-livro com formato circular vemos reiteradamente o motivo da mão (a «mão que cria e destrói», dirá numa pequena ficção que realiza para a RTP em 1977)[6], bem como algumas das suas esculturas, pinturas e desenhos, em que a esfera e o círculo se tornam formas recorrentes; surgem alguns dos murais que criou para espaços públicos –  nomeadamente o mural criado para a sede da FCG –, onde também o motivo do círculo e das formas abstratas é uma constante; contém fotografias de cenografias reminiscentes de um universo de ficção científica e diversas vistas de exposições que realizara; vemos a sua «lanterna onírica» concretizada tridimensionalmente, acompanhada pela inscrição «Do cérebro o ser o viver a cena cósmica»; observamos as suas esculturas dispostas no espaço e «ativada por crianças, num registo da instalação-performance Egotemponírico de 1972, bem como fotografias de uma performance em espaço urbano, na qual um homem e uma mulher puxam uma corda em direções opostas.

Não obstante o aparente alívio das tensões da Guerra Fria na década de 1970 com a assinatura dos Acordos SALT, o equilíbrio de forças entre as duas superpotências parecia perpetuar um conflito sempre pronto a eclodir. Assim, longe de se dissipar, a ansiedade provocada pela possibilidade de uma guerra atómica continuava a incentivar a proliferação de utopias e distopias como meio de imaginar futuros alternativos e a fomentar uma intensa contestação da ordem vigente. O despertar da consciência ecológica, a guerra do Vietname, a luta pelos direitos civis, os movimentos de descolonização, os diversos movimentos de contracultura criam, a partir dos anos de 1960, um movimento dúplice: por um lado uma crítica ao equilíbrio de forças vigentes (seja com uma crítica ao capitalismo, seja com uma crítica ao socialismo existente); por outro lado, uma busca de formulações culturais alternativas, desde as religiões e misticismos orientais (ainda que através de uma leitura exotizada e eurocêntrica destas culturas), seja através de um recrudescimento da ficção científica[7].

O imaginário de Espiga nos anos de 1970 concilia tecnologia, ficção científica, poeticidade ou misticismo cósmico e elaboração de uma utopia onde parece reconhecer na arte o potencial de reconectar as pessoas e criar uma sociedade alternativa. O 25 de Abril em 1974 exponenciou essa crença na possibilidade de transformação social, pondo cobro à ditadura do Estado Novo, iniciando a descolonização após anos de guerra colonial, quebrando o prolongado isolamento do país e eletrizando a década de esperança revolucionária.

Entre a atenção de Espiga ao mundo rural nos anos de 1960 e a criação de uma linguagem cósmica nos anos de 1970, observamos a expansão de uma reflexão sobre o espaço e sobre as possibilidades de criação de comunidade. Se nas cenas rurais dos anos de 1960 representa a jovialidade de uma comunidade circunscrita, nos anos de 1970 não só o espaço literal das suas obras se expande – da bidimensionalidade dos desenhos e pinturas, para a ocupação cenográfica do palco e desta para a ocupação tridimensional e performática de espaços arquitetónicos ou de espaços urbanos –, como se dilata a ambição simbólica das mesmas – que da representação de um mundo rural se transmuta na criação de uma simbologia cósmica. A unir os dois momentos, a mesma crença numa possibilidade de criação de comunidade.

Luísa Cardoso
Investigadora e historiadora de arte contemporânea


[1] A doação consta de 42 desenhos, dois blocos de estudos, seis esculturas, oito gravuras e um livro-catálogo.

[2] Veja-se o artigo «Morreu Espiga Pinto, pintor do mundo alentejano», Público, 1 de outubro de 2014 (consultado a 10 de junho de 2022).

[3] Espiga Pinto, Do meu início (1959-1966). Lisboa/Porto: Galeria de Arte São Mamede, 2010, s.p.

[4] O Ballet Gulbenkian adquire esta designação apenas em 1975. Em 1965 fora criado o Grupo Gulbenkian de Bailado, o qual, ao juntar-se em 1975 com o Grupo Experimental de Ballet do Centro Português de Bailado (criado em 1961), adquire esta denominação. Os Arquivos da FCG contêm outros materiais relativos a cenografias e figurinos que o artista criou para o Ballet Gulbenkian, com o qual colaborou entre 1968 e 1982.

[5] É possível ver um registo desta instalação e performance em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/exposicao-de-espiga-pinto/ (consultado a 20.05.2022).

[6] A curta-metragem mencionada pode ser visionada em https://www.youtube.com/watch?v=tm839BW9KUU&t=132s (consultado a 20 de maio de 2022).

[7] Embora a produção literária de ficção científica seja anterior, esta conhece um grande impacto público nos anos de 1970 devido à produção de filmes blockbuster. Estes popularizaram o género, alcançando uma audiência muito maior. Basta recordar alguns marcos cinematográficos deste período para termos uma ideia do seu impacto sobre o imaginário popular: 2001, Odisseia no Espaço é de 1968, O planeta dos macacos é de 1970, Laranja Mecânica é de 1971, Solaris é de 1972, Star Wars é de 1977, Superman é de 1978, Stalker é de 1979.

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