Utopia espacial

As Escolhas das Curadoras: Edgar Martins é a escolha de Leonor Nazaré, que reflete sobre a exposição que comissariou em 2014.
27 jan 2021

O trabalho de Edgar Martins conduz-nos à avaliação de uma geopolítica do secretismo e da (in)acessibilidade. Nos locais da ESA (European Space Agency) que visitou, em nove países diferentes espalhados por três continentes, a partir de um protocolo que acolheu o projeto com entusiasmo, a negociação foi constante e o acesso, apesar de real, nem sempre totalmente óbvio. Isso sublinha o facto de, para a esmagadora maioria, esses serem locais totalmente impenetráveis, que desenham no planeta uma rede de experimentação e de decisão ao mais alto nível, forçosamente política e secreta. O «documento» fotográfico é – ou foi, neste caso –, desejado e temido, facultado e evitado. O artista encarnou a figura ambígua do intruso convidado.

Não há ninguém nestas imagens (ou muito raramente) e o «corpo» da máquina impõe aos espaços fotografados a sua magnitude e abrangência dominante. Na série surgem imagens de interiores densamente preenchidos, nas quais proliferam fios, mangueiras, cabos, dispositivos elétricos e eletrónicos, braços articulados, baterias, contentores, esquemas, simuladores, botões, módulos, aceleradores, geradores, antenas, computadores, rockets, satélites, maquetas, peças, robôs… Componentes de laboratório e objetos de um museu da ciência.

Aspetos da exposição «Edgar Martins. A impossibilidade poética de conter o infinito». Fundação Calouste Gulbenkian, 27 de junho a 8 de setembro de 2014.
Aspetos da exposição «Edgar Martins. A impossibilidade poética de conter o infinito». Fundação Calouste Gulbenkian, 27 de junho a 8 de setembro de 2014.

Como terá dito Geoff Dyer, a propósito de outra série, «por vezes não existe qualquer sentido de escala». No caso desta obra, o olhar é aproximado de máquinas e de cabos tão desinteressantes e desconhecidos quanto detentores de eventual plasticidade visual.

Sabemos como a miragem do progresso se aliou à utopia espacial, mas sabemos também como a segunda metade do século XX e a pós-modernidade, em particular, foram longe no questionamento da ideia de futuro associada à de progresso; e podemos autorizar-nos também a pensar a utopia espacial como distopia, como perversão de uma condição (humana) na ultrapassagem de limites e no desenvolvimento de esforços eventualmente injustificáveis. «Desde sempre foi minha intenção poder fazer convergir, num trabalho emotivo e realista, uma vertente documental e conceptual, enquadrada numa análise reflexiva sobre o medium fotográfico e sobre diferentes modos de representação visual», explica Edgar Martins.

A ambiguidade entre o ponto de vista crítico e o fascínio pela utopia/distopia tecnológica esteve no cerne do debate que mantive com o artista durante a realização da exposição A Impossibilidade poética de conter o infinito (2014, na Galeria do Piso Inferior do Edifício Sede da FCG), que comissariei. No texto que assino no catálogo, «A Qualidade poética do infinito», interrogo esse fascínio: admiramos ou receamos a ambição da conquista espacial?

 

Visita guiada à exposição «Edgar Martins. A impossibilidade poética de conter o infinito», com o artista Edgar Martins e a curadora Leonor Nazaré, 2014.

 

Leonor Nazaré
Curadora do Centro de Arte Moderna


As Escolhas das Curadoras

As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.

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