Promiscuidade entre cinema e pintura – o caso do filme «Sombra»
Dias depois de ter entregado a dissertação de mestrado, a 30 de janeiro de 2009, senti um vazio imenso por já não ter o que escrever e por ter arrumado nas estantes os livros que tanto abraçara e espalhara pela casa.
Sei que este vazio é um sentimento natural nestas circunstâncias e que, inevitavelmente, nos leva a uma rápida digestão destes momentos de pressão.
A seleção do tema da tese foi difícil. Faziam parte da minha lista três ou quatro ideias estruturadas. Contudo, a escolha final parecia óbvia: trabalhar sobre filmes experimentais dos anos 70, de artistas portugueses, pertencentes à Coleção do Centro de Arte Moderna, que tinha descoberto recentemente enquanto me dedicava ao inventário da coleção. Filmes à margem, pouco estudados até então e que logo me fascinaram.
O cinema sempre foi uma paixão e, coincidentemente, o encontro com o filme experimental dos anos 60 e 70 através do livro de Laura Baigorri (Vídeo: primera etapa, 2007), que comprara numa viagem a Madrid, deu-me a resposta que necessitava para fortalecer este projeto, ao mesmo tempo que via e revia os filmes de Julião Sarmento, Ângelo de Sousa, Fernando Calhau e Ana Hatherly.
Neste caso, olhando particularmente para Julião Sarmento, o que me cativa nas suas obras são as inúmeras citações e referências provenientes do cinema e da literatura, bem como, e sobretudo, a recorrente promiscuidade entre cinema e pintura.
A relação de Sarmento com a linguagem cinematográfica está presente não apenas nos seus filmes experimentais, mas também nos variados meios utilizados pelo artista: da pintura, fotografia e desenho à montagem de imagens e texto.
Alguns dos seus filmes em Super 8 perderam-se, principalmente os filmes realizados entre 1967 e 1973. Sarmento trabalhou em filmes curtos, com a capacidade de uma bobina – cerca de três minutos –, e em filmes longos, resultado da montagem dos filmes de três minutos. Entre os filmes longos, encontra-se Sombra, mas também Cópias e Faces, todos realizados em 1976.
Em Sombra – filme com mais de uma hora de duração, adquirido para a Coleção em 2001 –, o foco é o tempo. O movimento da imagem é muito lento e apercebemo-nos da existência desse movimento através da sombra que esconde os corpos. A câmara fixa-se sobre as duas mulheres nuas num longo plano-sequência. Ao longo do filme, acompanhamos quatro diferentes posições dos dois nus femininos. Numa primeira fase, partem da escuridão para a luz e depois sucede-se o inverso, a escuridão vai ocupando, muito lentamente, o que está iluminado. No final, a sombra cobre totalmente o ecrã, transformando-o numa mancha negra. Os corpos estão presentes, mas não atuam, acabam por desaparecer e a sombra por vingar.
Com este filme, duas alterações significativas na produção artística afiguram-se. A câmara torna-se estática, recusando o movimento associado à diegese cinematográfica, e a imagem das mulheres nuas é apresentada desprovida de simbolismo, em corpos banais, num tempo mudo e numa ação congelada.
A ausência de uma linha narrativa, de clímax ou montagem valida a ideia que vigora neste filme: o espaço da pintura invade o tempo do cinema. Assim, a típica separação do cinema como arte do tempo e da pintura como arte do espaço aqui deixa de fazer sentido, colocando Julião Sarmento no encalço do filme experimental, movimento que criou um novo mundo dentro do próprio cinema, com nomes internacionalmente conhecidos como Andy Warhol, Jonas Mekas ou Stan Brakhage.
Patrícia Rosas
Curadora do Centro de Arte Moderna
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As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.
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