Os desenhos surrealistas de Julio

As Escolhas das Curadoras: Patrícia Rosas destaca desenhos da autoria de Júlio dos Reis Pereira.
08 out 2020

Júlio dos Reis Pereira (1902-1983), engenheiro de formação, frequenta a Escola de Belas-Artes do Porto como aluno voluntário. Inicia a sua prática artística com o desenho, colaborando, desde logo, no primeiro número da revista Presença, em 1927, assinando as suas obras como Julio.

Após a sua primeira exposição individual na SNBA, em Lisboa, em 1935, abandona a pintura, técnica que só retomará décadas depois. Nunca renuncia ao desenho, ao papel ou à tinta da China. Pelo contrário, será devido à intensa atividade na prática do desenho, sobretudo na década de 1930, que abandona o academismo vigente e embarca numa procura pela novidade. Repetindo formas, deformações, traços e, movimentos, disciplinando o gesto e a mão, os seus desenhos de pendor surrealista fazem parte de uma intensa produção que está datada de 1935 a 1939.

O desenho de Julio antecipa, de certa forma, o surrealismo português, de que são exemplos dois dos trabalhos pertencentes ao acervo do Centro de Arte Moderna (CAM), datados de 1939. De um «onirismo brilhante», refere Valter Hugo Mãe, ou «na exacta convicção de que a linha se pode bastar a si própria», escreve Vergílio Ferreira, o artista absorve o surrealismo internacional que chega através das publicações e das revistas que recebe, como a Minotaure ou Documents, ao mesmo tempo que vai construindo um universo muito próprio com formas por si criadas.

 

Julio, Sem título, 1939. Tinta da China sobre papel. Inv. DP580
Julio, Sem título, 1939. Tinta da China sobre papel. Inv. DP579

 

Julio visita museus e exposições quando viaja até Paris, em 1933. Algumas décadas mais tarde, numa carta enviada a Cesariny, destaca as publicações surrealistas (ex. La peinture au défi, de Aragon), que pôde adquirir nessa primeira viagem à capital francesa, e as revistas que lá folheou. Acrescenta ainda que já tinha mandado vir de Paris Le surréalisme et la peinture de Breton (em 1931) e o número dos cadernos belgas Sélection, dedicado a Chirico, «visto não os encontrar nas livrarias do Porto».

Acompanhando a dinâmica internacional modernista, através de uma pesquisa apaixonada pelo movimento, pela intensidade plástica, pela giração ou pelos ritmos, a obra do CAM, sem título, também conhecida como «Diálogo das Máscaras», procura estabelecer um equilíbrio entre as figuras, como se de uma triangulação se tratasse, embora com diferentes níveis de perceção na composição do desenho. O rosto-máscara, ausente de volume, aparece nos dois lados da composição com a presença de um boião de tinta da China e de um pincel em cima da mesa. No centro do desenho, curiosamente, aparece a imagem do outro desenho, sem título, que também pertence à CM; na zona superior surge um quadro pendurado na parede que representa uma paisagem (poderá ser uma pintura de Julio?). Os dois rostos – ou máscaras – representarão o próprio artista – pintor e poeta?

Ambos os desenhos foram adquiridos a Julio, juntamente com uma série de outras obras, em 1980, ano da exposição retrospetiva do artista na galeria de exposições temporárias do Edifício Sede da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG).

 

Vista da exposição «"a imagem que de ti compus". Homenagem a Julio». CAM, 2013

 

A obra de Julio regressou à FCG em 2013. Com António Gonçalves, então diretor artístico da Fundação Cupertino de Miranda (FCM), organizámos a exposição «a imagem que de ti compus». Homenagem a Julio, que reuniu obras de Julio da FCM e do CAM, exposição que esteve patente no CAM. Foi uma oportunidade para revisitar as primeiras décadas do percurso de Júlio dos Reis Pereira e desenvolver a relação entre o poeta Saúl Dias (pseudónimo do artista) e o pintor Julio.

 

Patrícia Rosas
Curadora do Centro de Arte Moderna


As Escolhas das Curadoras

As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.

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