«Fuga»
«Procuro a síntese da forma. Em cada pincelada busco uma intenção cerebral. Por isso, quando pinto, gostava de ter na cabeça pincéis em vez de cabelos. Era assim mais directa a execução da pintura como eu a quero, pois da cabeça às mãos quantas traições me desvirtuam uma execução obediente.»
Mário Eloy in catálogo do I Salão dos Independentes, Lisboa, 1930
Ao longo de cinco meses, Mário Eloy executou esta pintura no ateliê do seu grande amigo Jorge Segurado. Ao referir, na correspondência trocada com Segurado a propósito da escolha das suas obras para a IV Exposição de Arte Moderna do SPN (em 1939), o tempo de execução do trabalho, Eloy reforçava a importância que atribuía à pintura: «A exposição só me interessa figurando a “Fuga” […]»; ou, noutra carta, «[…] lamento profundamente ter que te dizer, que a não figurar a “Fuga”, deixo de tomar parte no Salon. […] Estou cinco meses com esse quadro, alguma coisa ficou por lá, deixai-o passar.»
Muito ficara, na verdade, nessa tela que nos atinge como uma declaração brutal. O que vemos?
À primeira vista, um homem parece correr. Sentimos a força que o oprime, na representação compacta do tronco, a cintura marcada no esforço do controlo de pernas e pés, que se dobram e cruzam algo desregradamente. Ninguém corre assim. A cabeça atirada para trás forma um impossível ângulo reto com os ombros. Os olhos estão fixos, vítreos, a boca aberta num esgar.
O seu braço direito sustenta, mais do que envolve, a grande cabeça branca que transporta, rachada na face e claramente partida acima do olho esquerdo. As proporções apolíneas entre o traçado do nariz e a disposição simétrica dos olhos, boca e cabelo sugerem tratar-se do fragmento de uma escultura clássica. Uma mancha alastra entre a cabeça e o pescoço estirado do homem, uma abrasão vermelha cujo tom cai sobre cinco rosas que pendem de um desmanchado ramo, preso na sua mão esquerda. Esta mão agarra firmemente, por baixo, o braço direito, os quatro dedos visíveis são bem delineados e fortes.
Sob a linha da cintura, o plano horizontal da coxa não é suficiente para estabilizar os ângulos tensos formados pelas pernas dobradas, como no impulso de um salto. E desta amálgama de pernas e calças destaca-se, isolado, vibrante, perfeitamente iluminado e em primeiro plano, o pé esquerdo, com a planta virada para nós. Um pé desenhado na vertical e lançado no ar, desde o grosso calcanhar redondo às falanges recortadas dos dedos, dos quais se afasta o dedo maior numa torção espasmódica.
O vermelho é apenas uma dupla nota na tela que reverbera no empastamento dos verdes, azuis e ocres, como era característico da pintura de Eloy. Este homem representado – talvez um autorretrato, prematuramente envelhecido –, dir-se-ia uma escultura que ganhou vida mas ficou presa em ondas de tinta com forte impasto. A cor texturada é um dado fundamental na sua pintura cuja paleta, frequentemente sombria, declina nesta tela as ricas modulações do azul ultramarino e do viridian, as suas cores preferidas.
Na análise que faz do desenho de Füssli intitulado O Artista Esmagado pela Grandiosidade das Ruínas Antigas1, de 1778-1779, Linda Nochlin aponta a representação do fragmento como metáfora da modernidade, sendo a construção do Moderno resultado da perda trágica da totalidade, da unidade2.
Esta pintura de Eloy parece-me a visão modernista da consciência desse conflito, dessa perda (que era também pessoal, em parte devido à devastadora doença de Huntington que já o afligia e que lhe seria diagnosticada no ano seguinte). A propósito da sua pintura exposta em Berlim dez anos antes, e apesar de se declarar expressionista e grande admirador de Kokoschka, Eloy referia ser «o cubismo que serve de construção às figuras profundamente clássicas que hoje pinto – porque o cubismo na sua essência é clássico –, procurando ter sentimento consciente a par da emoção abstracta.»
Este entendimento do papel fragmentado do clássico na modernidade está representado em Fuga, a que foi sensível Jorge Segurado ao comentar tratar-se de uma obra «moderníssima [com] uma rajada clássica». Profundamente antiacadémico e antiburguês no sentido da inquietação e do desconforto que procurou, o compromisso artístico de Eloy foi para com a sua verdade interior, a absoluta necessidade da criação como única relação possível com o mundo e consigo próprio.
Recomendo a consulta do catálogo da exposição retrospetiva realizada pelo Museu do Chiado em 1996, bem como o estudo de Lígia Afonso publicado em 2010 pela QuidNovi na coleção sobre pintores portugueses.
1 The Artist Overwhelmed by the Grandeur of Antique Ruins, também conhecido como The Artist in Despair over the Magnitude of Antique Fragments.
2 Linda Nochlin, The Body in Pieces. The Fragment as Metaphor of Modernity. Reino Unido: Thames & Hudson, 1994.
Ana Vasconcelos
Curadora do CAM
As Escolhas das Curadoras
As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.
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