Em relação
Quando visitamos um museu muitas vezes pensamos em qual obra gostaríamos de levar para casa. Se fizer esse exercício com o Centro de Arte Moderna lembro-me imediatamente desta fotografia da autoria de Craigie Horsfield (Cambridge, 1949), o retrato de um seu amigo polaco, uma fotografia de grande formato que se parece com uma pintura.
Na minha escolha, não me deixo intimidar por se tratar do retrato de uma pessoa desconhecida, de quem nada sei. Nem teço explanações sobre as fronteiras, já antigas, entre pintura e fotografia, ou respondo a algum gosto particular por um tema ou uma época. Escolho-a simplesmente por ser uma imagem que me fascina desde a primeira vez que a vi, uma imagem que para mim existe para lá do tempo e do espaço, sobre a qual fui construindo um discurso amoroso.
Esta capacidade de enamoramento é comum a todos os que gostam de olhar para obras de arte, talvez seja só preciso ter verdadeiramente tempo para ver. Mas, como acontece com todas as obras de arte, também esta indicia um universo criativo muito maior, que gostaria de apresentar, embora muito sucintamente.
Leszek Mierwa, ul. Nawojki, Kraków, August 1984 – como se fosse uma nota de um diário, o título refere o nome do retratado, o lugar, ul. Nawodjki em Cracóvia, e a data da captação da imagem – chegou à coleção em 1994. Feita em 1984, durante um regresso de Craigie Horsfield à cidade para onde tinha ido viver, saindo de Londres, na década de 1970, a imagem só foi impressa quatro anos mais tarde, em 1988.
O trabalho de Craigie Horsfield tem várias particularidades que fazem dele um fotógrafo excecional entre grandes fotógrafos que, na década de 1980, mudaram a fotografia contemporânea. A qualidade inultrapassável da impressão é uma delas, num intenso trabalho de estúdio, realçando a materialidade da imagem e a particular atenção dada às gradações de tons e à modulação com a luz, como é o caso destes grandes retratos a preto e branco que o tornaram conhecido.
Gosto particularmente da forma como descreve o modo como faz fotografia: «primeiro como uma conversação, depois como o esboço de uma pintura e, por fim [na fase de impressão], como um pensamento em ação». A este processo muito físico e demorado de impressão, que ocorre frequentemente muito tempo depois da captação da imagem, associa a realização de uma prova única, com destruição do negativo, negando assim uma das principais características da fotografia associada ao potencial da sua reprodutibilidade técnica.
A partir da década de 1990, Craigie começou a realizar projetos colaborativos em localidades específicas, com comunidades de pessoas a partir de demorados encontros, sobre os quais realizou livros, instalações com fotografia, vídeo, gravações de som. Há uma dimensão quase épica no seu trabalho, um sentido dilatado do tempo que designa por «tempo lento», no desejo de captar na imagem um «presente profundo» [a deep present], para o qual não possuímos outra linguagem.
A fotografia surge como o resultado de uma conversação, algo que fazemos quotidianamente e que nos põe em relação com e essa ideia de relação é verdadeiramente central no seu trabalho. Como diz «nascemos em relação, vivemos em relação e morremos em relação.
O seu modo muito pessoal de fazer e entender a fotografia – no polo oposto de tirar o retrato, capturar o instante ou a primeira impressão de alguma coisa –, despertou-me um grande interesse pela sua obra e o desejo de me manter sempre em relação com o seu trabalho e com as ideias que defende.
Recomendo a consulta do catálogo Craigie Horsfield Relation, uma edição conjunta Jeu de Paume, Fundação Calouste Gulbenkian e Museum of Contemporary Art Sydney por ocasião da apresentação da sua exposição em 2006.
Ana Vasconcelos
Curadora do Centro de Arte Moderna
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As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.
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