Distanciamento Social
No início do século XX, nas penitenciárias portuguesas, o uso obrigatório do capuz impedia a identidade e o reconhecimento dos prisioneiros entre si. José Luís Neto amplia os rostos tapados de 10 prisioneiros a partir do negativo de uma fotografia de Benoliel realizada em 1913 no anfiteatro do estabelecimento prisional de Lisboa, aquando da cerimónia oficial que pôs fim ao uso obrigatório do capuz nas penitenciárias, fazendo sentir, mais do que ver, o encarceramento físico e psicológico extremo a que o dispositivo correspondia: os prisioneiros eram, até aí, obrigados a usá-lo sempre que se encontravam em espaços comuns.
A situação de total perda de identidade e de cerceamento da comunicação assim imposta envolve de sufoco, desconforto, medo, indignação, interrogação, estes rostos-fantasma, cuja aparência se situa entre o granito e a evanescência, entre um peso esmagador e a ameaça de esboroamento.
Os olhos, a boca e o nariz aparecem como lugares de mais acentuado fechamento, por se esperar que sejam aberturas. O lado animal das pessoas é exacerbado, para também, por aí, as desumanizar.
O trabalho do medium e do negativo da imagem acentua a intensidade do referente.
Se aprisionar na solidão e no anonimato total causa viva repugnância ao homem contemporâneo, a exposição voluntária da vida privada nas redes sociais coloca-o, aparentemente, no extremo oposto da vivência comunitária; contudo, esses dois extremos tocam-se na condição «prisional» da vigilância permanente.
O trabalho de J. L. Neto e o livro de Michel Foucault (Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, 1975) motivaram o título de uma conversa pública que realizei no espaço da mostra permanente da Coleção Moderna em 2016 (Portugal em Flagrante, Operação 1) e promoveram o encontro entre o princípio e o final do século, que toda a organização expositiva da mostra quis proporcionar. Nela se propunham obras, documentos e trabalhos que ficavam na fronteira entre as duas tipologias, assim como alterações pontuais da cronologia geral, por razões fundamentadas na natureza, no conceito e nos referentes da obra. Era o caso deste trabalho.
Como repara Semedo Moreira, nas reportagens televisivas o sucesso e a beleza são exibidos, tanto quanto a culpa do arguido ou do preso o levam a esconder o rosto. Mas a obrigatoriedade de o fazer no interior da prisão nega sociabilidade e individualidade, indispensáveis à recuperação do recluso.
A história dos sistemas prisionais adotados em Portugal a partir de modelos importados, nomeadamente o «sistema de Filadélfia» ou «Pensilvano» (combinando o panótico com o sistema radial de isolamento constante e vigilância permanente) e o «sistema auburniano» (que combina isolamento com atividades diurnas conjuntas), explica a história das disposições penais adotadas em Portugal, por exemplo em 1852, na reforma de 1867 e na Penitenciária de Lisboa em 1885.
O trabalho de Foucault elabora extensamente a questão biopolítica da normalização e do controlo, fazendo a história da prisão e das punições da criminalidade como instrumento de modificação do sujeito, no sentido da sua «utilidade» social: moldar a vontade, apagar a memória, esbater e alterar a identidade, anular o olhar do outro como espelho.
Torna-se óbvio o confronto com a situação contemporânea de exposição permanente (aparentemente desejada, on-line, e imposta pela georreferenciação de todos os movimentos, atos de cidadania e de consumo). O debate sobre essa forma de «servidão voluntária» em situação de aparente liberdade trouxe à reflexão a atualidade que nela se reconhece. A condição solitária dos prisioneiros, em perda de identidade e sob vigilância permanente interpelam, de longe, a condição atual de todos os internautas e de todos os cidadãos sujeitos a formas de ditadura sanitária ou global.
Leonor Nazaré
Curadora do Museu
As Escolhas das Curadoras
As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.
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