Ervand Kotchar

Tiblisi, Geórgia, 1899 – Erevan, Arménia, 1979

Artista de origem arménia, Ervand Kotchar teve breve fama no Paris de entre-guerras graças, sobretudo, às suas peintures dans l’espace (pinturas no espaço), resolução original do problema—eminentemente vanguardista—da inclusão do espaço e do tempo na pintura. Expôs ao lado de alguns dos artistas mais importantes da época, e foi um dos subscritores originais do “Manifesto Dimensionista”, de 1936, que juntava nome como Hans Arp, Francis Picabia, Kandinsky e Duchamp. No entanto, parte, neste ano, para a Arménia, onde, vítima da perseguição Estalinista, só voltou a expor nos anos 50. Esquecido nas histórias das vanguardas parisienses, conseguiu, nas últimas décadas da sua vida, um grande reconhecimento na Arménia, onde é hoje considerado um dos expoentes máximos da arte do século XX.

Ervand Kotchar nasceu em Tiflis, Geórgia. Após ensino artístico na sua cidade natal estudou em Moscovo nos anos de 1918 e 1919, onde contactou com as várias correntes de vanguarda (do suprematismo ao construtivismo) que então se afirmavam no efervescente clima pós-revolucionário. Como Malevitch (1879–1935), assimilou rapidamente as inovações das vanguardas europeias, nomeadamente a obra de Matisse e Picasso, que pôde estudar em primeira mão através da coleção de arte moderna de Sergueï Chtchoukine (1854–1936), nacionalizada após a Revolução de Outubro de 1917.

Regressando a Tiflis, ensina na Academia de Belas-Artes desta cidade. Contudo, ano e meio depois parte de novo para uma longa viagem que o leva, através de Constantinopla e Veneza, a Paris. A estadia na então capital da arte (de 1923 a 1936) é fundamental no percurso de Kotchar. É lá que a sua arte se afirma, assimilando as novidades vanguardistas que conhece de perto, mas também as temáticas oriental e religiosa que estudara durante a viagem a Paris. Por outro lado, parece que é também em meados dos anos 20 que faz as primeiras incursões na escultura. Participa nas exposições de arte moderna (a Salon d’Automne, a Salon des Indépendants) e em mostras internacionais (L’art d’aujourd’hui, em 1925, Panorama de l’art contemporain, em 1930). A partir de 1926 expõe individualmente, com uma retrospetiva em 1934, na Galeria Vignon, sob o título Kotchar. Peintures, sculptures, dessins.

É numa exposição individual em 1928, na Galeria Van Leer, que mostra pela primeira vez as suas “pinturas no espaço”, a maior parte das quais tem por título Peinture dans l’espace. São obras que se posicionam no cruzamento entre pintura e escultura, imagem e objeto, e que constituem, sem dúvida, o lado mais interessante do trabalho de Kotchar. Inicialmente rudimentares blocos de madeira pintados, rapidamente aperfeiçoa a sua abordagem em objetos híbridos, pinturas sobre metal, que, de forma surpreendente, superam a separação tradicional entre superfície pintado e espaço esculpido. (Um breve documentário disponível on-line sublinha o carácter espacial destas obras.)

As “pinturas no espaço” respondem a uma série de temas maiores das vanguardas das primeiras décadas do século XX: os novos materiais (o metal) e a “estética da máquina”, a afirmação materialidade da imagem e atração do objeto, a introdução da transparência e do vazio… Por outro lado, está também presente o recurso a imaginários extemporâneos (neste caso os ícones orientais), cujo tratamento, sobretudo a partir de 1930, denuncia uma clara dívida ao surrealismo, apesar de não haver indícios de uma aproximação efetiva ao grupo de Ande Breton (1896–1966), nem a Dalí, com cuja obra há por vezes afinidades óbvias (nomeadamente nas obras do CAM).

Um manifesto do artista, intitulado “La peinture dans l’espace” e datado de 1935, pode ajudar a esclarecer as premissas que orientaram a obra de Kotchar. Cita-se da sua reprodução na revista Colóquio/Artes (2.ª série, n. 83, Dez. 1989, p. 28–31), feita a partir de uma cópia existente no espólio de António Pedro, artista português que nestes anos estava em Paris e assinou, tal como Kotchar, o “Manifesto Dimensionista”, onde são defendidos ideias muito semelhantes. Em “La peinture dans l’espace”, Kotchar define a introdução da duração e do movimento como problema maior e secular da pintura—problema que nem mesmo o futurismo logrou resolver, limitando-se à super-imposição de várias imagens estáticas. Face a esta diagnóstico, defende a libertação da pintura do suporte plano (a tela, o quadro, o cavalete), a fim de a desenvolver no espaço: o seu desejo é o de montar a pintura “sobre um andaime calculado que a torna infinita e independente, como um organismo vivo”.

A representação da figura no espaço ou, mais precisamente, a interpenetração da figura e do espaço, do espaço físico da forma e do espaço virtual das imagens, é, de facto, tema nuclear da obra realizada em Paris por Kotchar—não só nas “pinturas no espaço” mas também nas obras com suportes “tradicionais”, que continua a produzir. A sua obra insere-se, neste sentido, num retorno a uma problemática primeiro colocada pelo cubismo, e reiterada tanto pelo futurismo como pelo construtivismo, também atestado pelo já referido “Manifesto Dimensionista” (1936), que congregara nomes tão relevantes neste período como Hans Arp (1886–1966), Francis Picabia, Wassily Kandinsky (1866–1944), Marcel Duchamp (1887–1968) ou Alexander Calder (1898–1976).

O que ressalta, contudo, do seu manifesto é que, se o problema do “plano da pintura” parece bem diagnosticado (“… toda a atividade do homem da nossa época tende à libertação e à independência das coisas”, invocando exemplos como a publicidade, a fotografia, o design, o cinema…), não será a solução da espacialização da pintura por ele proposta, mas antes as tendências, opostas e complementares, da objetificação da pintura e da virtualização da imagem, que marcarão a arte das décadas seguintes, do Expressionismo abstrato ao Minimalismo e à arte concetual.

A proposta de Kotchar preserva sempre a representação, mesmo quando dissolve a imagem no objeto. Como nota Christian Perazzone, no catálogo da exposição Forjar el espacio. La escultura forjada en el siglo XX (Gran Canaria: Centro Atlantico de Arte Moderno, 1999, p. 223–229 ), onde a obra de Kotchar teve lugar de destaque, há nas “pinturas no espaço” um dualismo entre tradição e ruptura, entre uma espacialização pictórica extremamente vanguardista e uma preservação de princípios básicos da tradição ocidental (as clássicas unidades de tempo, espaço e ação, que Kotchar atacara no seu manifesto), sublinhada por uma iconografia que remete abertamente para a tradição religiosa oriental. Talvez por isso a sua obra seja dificilmente assimilável em histórias da arte mais lineares, onde a proposta de Kotchar poderia parecer um beco sem saída. Mas a verdade é que as Peintures dans l’espace têm, além do seu carácter programático eventualmente discutível, um valor autónomo que se mantém atual na sua frescura e inventividade.

É, portanto, num contexto de segura afirmação artística que Kotchar decide, em 1936, mudar-se para recente República Socialista Soviética de Arménia, em pleno terror Estalinista, por razões que não são claras. Fixa-se na capital, Erivan, onde trabalha como artista, ilustrador e cenógrafo. Destaca-se, neste primeiros anos, com uma participação no concurso para uma estátua equestre a David de Sassoun, de 1939, por ocasião da celebração do aniversário milenar do épico arménio com este título. Em 1941 é denunciado como inimigo do povo e preso. Parte da sua obra (incluindo a estátua equestre e um busto de Estaline que o figura como máquina) é destruída.

Liberto dois anos depois, por intervenção de antigos colegas de escola, só em meados dos anos 50 voltará a ser publicamente reconhecido, em contexto político mais ameno (recorda-se que Krushchev iniciou a “destalinização” em 1956). Em 1955, um convite francês para uma retrospetiva, apoiada por uma carta aberta assinada, entre outros, por Sónia Delaunay e o crítico Waldemar George (1893–1970), marca o momento de inversão. Não é autorizada saída do artista ou sequer das suas obras, e a retrospectiva só se realizou em 1966 (Kotchar et la peinture dans l’espace, Galerie Percier), sem poder contar com a presença do artista ou com obras do período posterior a Paris. Contudo, em 1956 é lhe dado o título de Artista Honorífico da República de Arménia e a sua obra passa a ser revalorizada pelas instâncias oficiais e o público—apesar de só em 1965 voltar a expor individualmente.

Nas últimas décadas da sua vida conhecerá um reconhecimento oficial crescente. É objecto de várias honrarias (o título de Artista do Povo, em 1965, a Ordem da Bandeira Vermelha soviética, em 1971, entre outras) e esculturas monumentais da sua autoria são instaladas em Erevan e outras cidades. Destacam-se uma versão reconstruida da estátua equestre de Sassoun, hoje o ex-libris de Erevan, e uma Musa Cibernética, no Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Computadores na mesma cidade. Nos anos 70 regressa às suas “pinturas no espaço”, produzindo uma nova série onde inclui, através de motores, o movimento. (Para imagens visite-se o site do Museu Kochar.)

Morreu em 1979, com direito a lugar no Panteão Nacional. Em 1984 o seu antigo atelier, onde foram sendo realizadas exposições da sua obra, é transformado no Museu Ervand Kochar. Em 1989 realizou-se uma exposição retrospetiva na Galerie G. Basmadjian, em Paris, ocasião em que o CAM adquire as duas esculturas de Kotchar no seu acervo. Hoje, é considerado um dos mais importantes artistas arménios do século XX.

 

Gerbert Verheij

Maio de 2013

Atualização em 16 abril 2023

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