Ana Vieira

Coimbra, Portugal, 1940 – Lisboa, Portugal, 2016

Nasceu em Coimbra. Passou a infância na ilha de S. Miguel, nos Açores. Partiu para Lisboa, para se graduar em Pintura pela Escola Superior de Belas-Artes (1964), mas desde então que o seu percurso foi marcado por um desvio ao suporte do quadro pintado, em busca de construções cénicas e teatrais, ou da manipulação de figuras e objectos, criando “simulacros” que lidam essencialmente com a alegoria e a memória. Quatro décadas de trabalho unidas por uma invulgar coerência, no tipo de operação poética com que Ana Vieira visa sempre libertar imagens e objectos da sua própria existência material e mundana – seja através de ambientes, instalações, cenografias, recortes ou montagens. Ana Vieira vive e trabalha em Lisboa.

Ana Vieira estudava pintura, quando se começou a afastar dela – além de se considerar inepta, sentia que o suporte pictórico comprometia a sua expressão artística. Começou a expor muito cedo, e o título da primeira mostra individual, Imagens Ausentes (1968)*, deixava já claro que apesar de transposta a tirania do quadro, continuaria a trabalhar no domínio da imagem – embora de modo necessariamente experimental. Ainda na década de 60, apresenta perfis e recortes de objectos e figuras, cujas representações miméticas são no entanto ilusórias, porque embora reconhecíveis, apenas delineiam formas vazias por dentro, ausentes – concebendo desde então as suas obras como “simulacros” intencionais daquilo que dão a ver. Para o seu trabalho, escolhia sobretudo objectos de uso doméstico, como peças de mobiliário (mesas, móveis, consolas, espelhos) em madeira recortada, e depois homogeneizada com tinta industrial. Também as suas figuras são desprovidas de identidade, nas sucessivas silhuetas e recortes de bustos humanos, mas também no perfil de corpos inteiros em movimento ou tensão que traça em biombos e placas.

A partir dos anos 70, a recriação pós-pictural de objectos comuns levou Ana Vieira a adoptar a instalação como prática artística preferencial, e a delimitar o território do seu trabalho na semiótica dos espaços físicos e sociais. A concepção de cenários surgia como possibilidade de uma obra aberta, com a qual a artista transgrediu as divisões entre pintura e escultura e concebeu as criações em função do espaço envolvente, com o qual comunicam. Quando mostrou os seus Ambientes, logo em 1971 e 1972, Ana Vieira ganhou lugar destacado na vanguarda artística portuguesa, participando na exposição mais marcante da década, a Alternativa Zero (1977). Com estas instalações, constituídas como lugares habitáveis que reencenam as casas e os seus rituais domésticos, os simulacros de Ana Vieira ganharam escalas e significados mais vastos, focando-se na intimidade e na memória que os espaços privados preservam. A evolução dessa linguagem altamente simbólica era assim acompanhada da proliferação de objectos caseiros como mesas, janelas, portas, cadeiras.

Contudo, apesar da imaculada simplicidade formal das obras de Ana Vieira, lembrando as sombras de Lourdes Castro ou os espelhos de Pistoletto, a percepção visual dos espaços é no entanto condicionada por um jogo de transparências, véus, telas, redes e tramas que os envolvem – o observador acaba na posição de voyeur, tentando, por frinchas e buracos, perceber o interior dos ambientes. A maior parte das suas obras não se vêem, espreitam-se, e a tensão é ademais reconhecida no título do seu projecto mais duradoiro, Ocultação / Desocultação (1978-2009). A impenetrabilidade física e visual dos seus espaços privados repete intencionalmente a barreira entre a arte e a vida, confirmando que os seus ambientes são tanto acerca do ver como do viver.

O apelo da cenografia conduziu Ana Vieira a outras experiências mais diversificadas, como a produção de cenários e figurinos para o teatro (peças de Adolfo Gutkin, Bertolt Brecht e Jean-Paul Sartre), projectos de reconfiguração de lugares, casas e paisagens, ou pensados numa relação específica com o espaço do museu. Certo é que a modalidade artística da instalação e a manipulação de objectos tridimensionais continua hoje a ser cultivada na sua obra, com reinvidicações poéticas pouco distantes das que primeiro motivaram o seu trabalho em meados nos anos 60. Considerando um tal percurso coeso e em contínua renovação nas novas exposições individuais que mostrava, Ana Vieira recebeu o prémio da crítica portuguesa AICA/SEC (1991), e a Fundação de Serralves no Porto dedicou-lhe a sua primeira exposição antológica (1998). Entre 2010 e 2011, o CAM, em colaboração com o Museu Carlos Machado de Ponta Delgada, apresenta a maior retrospectiva na carreira da artista plástica.

 

Afonso Ramos

Abril de 2011

 

* Na Galeria Quadrante, em Lisboa.

Atualização em 20 abril 2023

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