A Arte e o Sagrado. Colecção João Marino

Tendo por base o vasto acervo de arte sacra da Coleção João Marino, esta mostra traçou um roteiro na arte do Brasil do século XVI ao século XIX. As mais de 400 peças de escultura e prataria revelavam como os cânones da arte europeia sofreram interessantes interpretações indígenas no decurso do período do colonialismo português.
Exhibition on the course of Brazilian art from the 16th to the 19th centuries based on the vast João Marino Collection of Sacred Art, featuring 400 sculptures and works in silver. The display revealed the interesting way that European artistic trends were interpreted and transformed in the indigenous Brazilian context during the Portuguese colonial period.

Decorrente de mais uma colaboração entre a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) e a Embaixada do Brasil em Portugal, a exposição «A Arte e o Sagrado. Coleção João Marino» inaugurou a 6 de dezembro de 1988, encerrando um ano de programação prolífero em arte brasileira.

Desta feita, a Galeria de Exposições Temporárias da Sede da FCG (piso 0) apresentaria um importante acervo de obras de arte sacra daquela que era, à data, uma das coleções mais significativas para a compreensão das expressões artísticas do Brasil colonial.

Foram expostas obras de escultura e prataria religiosa, dos finais do século XVI a meados do século XIX, totalizando 419 espécimes que acompanham a introdução e maturação da iconografia católica no imenso território brasileiro.

O material fotográfico disponível nos Arquivos Gulbenkian revela que o Serviço de Exposições e Museografia da FCG cartografou o espaço expositivo a partir de um núcleo central, de paredes circulares, nas laterais do qual se ramificavam as duas secções da exposição: «A Imaginária no Brasil» e «A Prata e a Mineração no Brasil», títulos coincidentes com dois textos que o próprio Marino assina no catálogo da exposição, transcritos do seu livro Coleção de Arte Brasileira, publicado em 1983 (A Arte e o Sagrado…, 1988).

Entre as esculturas, merecem destaque as de Frei Agostinho da Piedade (?-1661), um dos vários artistas de origem portuguesa, em atividade durante o século XVII, a introduzir cânones da chamada «arte erudita» no Brasil. As suas cerâmicas policromadas ombreiam com as de um outro mestre, Frei Agostinho de Jesus (1600-1661), nascido no Brasil e representativo do processo de amadurecimento plástico dessa influência europeia nos centros de produção brasileiros. Também oriundo de Portugal, saliente-se o trabalho do escultor-entalhador Frei Francisco Xavier de Brito (?-1751), já da primeira metade do século XVIII. A sua obra marcaria António Francisco Lisboa (c. 1738-1814), mais conhecido por Aleijadinho, que, na arquitetura, talha e escultura, desenvolveria uma das expressões mais consolidadas do barroco brasileiro.

O florescimento da osmose com a Europa era também testemunhado pela prataria litúrgica, que, apesar do postulado mais estável das suas formas funcionais, evocava signos iconográficos que o colonialismo ia fazendo nascer.

No entanto, era talvez com a pequena escultura móvel, de autores anónimos, que a exposição mais manifestava o seu potencial etnológico, afirmando desvios estéticos mais autóctones e dissidentes dos desígnios de erudição exportados da Europa.

Apesar de a mostra ter tido lugar em Lisboa apenas no final de 1988, este representativo acervo encontrava-se em itinerância internacional desde março desse ano.

A Fundação Calouste Gulbenkian desempenhou funções logísticas fundamentais para possibilitar esse trânsito. Além de ter sido o último destino expositivo das 419 peças na Europa, custeando o seu regresso ao Brasil, desempenhou ainda o papel de instituição depositária das peças, e intermediadora, entre as mostras anteriores pelas cidades de Paris e Moscovo. A documentação refere, mas não corrobora completamente, a ida deste acervo à União Soviética, entre os meses de outubro e novembro (cf. Folha de São Paulo, 14 out. 2010).

Os trâmites desta colaboração extensiva encontram-se bem estabelecidos na correspondência trocada entre José Blanco (representante do Conselho de Administração da FCG) e o próprio João Marino (Ofícios entre José Blanco e João Marino, 3 e 20 mai. 1988, Arquivos Gulbenkian, SEM 00403). Nesta documentação, transparece inclusivamente que o contacto entre os dois terá começado no Brasil, em casa de José Mindlin, um outro colecionador e bibliófilo brasileiro envolvido noutros projetos da FCG, nomeadamente na mostra «Pioneiros e Discípulos. Gravura Brasileira», patente em fevereiro e março deste mesmo ano de 1988.

As peças da Coleção João Marino dariam entrada nos registos da FCG logo em julho de 1988 (Carta de João Marino para José Sommer Ribeiro, 30 jul. 1988, Arquivos Gulbenkian, SEM 00403). Chegavam de Paris, onde tinham marcado presença, de 9 de março a 28 de junho de 1988, na exposição «Art et Sacré. Le Baroque du Brésil. Collection João Marino-Frans Krajcberg» («Art et Sacré…», realizada no Centre Culturel de Boulogne-Billancourt, Arquivos Gulbenkian, SEM 00403). Apresentada pelo então Centre Culturel de Boulogne-Billancourt (onde se encontra atualmente o Centre Georges-Gorse), essa mostra tinha justaposto esse património da arte colonial brasileira a obras de arte contemporânea da autoria de Frans Krajcberg (1921-2017), artista de origem polaca que obtivera nacionalidade brasileira em 1957, após chegar ao país em 1948. No Brasil, Krajcberg – cuja arte manifesta um enorme compromisso ecológico – tornar-se-ia um destacado ativista ambiental.

Um artigo da imprensa brasileira adianta que terá sido Marylis de La Morandière, diretora do referido Centre Culturel, que, numa deslocação ao Brasil, acertou as diligências oficiais para a vinda das obras para a Europa (Paskowich, Folha de S. Paulo, 19 fev. 1988). Foi também ela que, terminada a exposição de Paris, acompanharia o acervo até Lisboa, supervisionando a desembalagem das obras (Cartas de Morandière para José Sommer Ribeiro, 17 jun. e 11 ago. 1988, Arquivos Gulbenkian, SEM 00453).

As obras ficariam em depósito na FCG até embarcarem para Moscovo, onde seriam expostas «provavelmente de 18 de Outubro a 6 de Novembro […] [estando] de volta a Lisboa entre 10 a 12 de Novembro», para serem finalmente trabalhadas pelas equipas da FCG (Carta de João Marino para José Sommer Ribeiro, 17 ago. 1988, Arquivos Gulbenkian, SEM 00403).

Na imprensa da época, surge a indicação de que a exposição de Lisboa encerraria a 8 de janeiro de 1988 (O Europeu, 31 dez. 1988). Após o fecho, José Sommer Ribeiro remete uma nota conclusiva a João Marino, adiantando que a exposição terá recebido mais de 9000 visitantes, apontando para uma afluência muito considerável, à data, tendo em conta o curto período em que a mostra esteve patente (Ofício de José Sommer Ribeiro para João Marino, 30 jan. 1989, Arquivos Gulbenkian, SEM 00403).

Recentemente, a Coleção João Marino foi alvo de polémica, à semelhança de outras coleções privadas fortemente dedicadas à arte sacra do Brasil pré-republicano. A 13 de outubro de 2014, uma notícia do periódico Folha de S. Paulo dava nota de que o Ministério Público de Minas Gerais tinha desencadeado ações judiciais reclamando a adjudicação de algum desse património cultural, ora às dioceses que atualmente ministram os lugares de onde os objetos terão saído, ora ao domínio público. Num aceso esgrimir de legitimidades jurídicas, alguns desses objetos figuram hoje em instituições museológicas, como será alegadamente o caso de um busto de São Boaventura, da autoria de Aleijadinho, que terá estado presente nesta mostra da FCG em 1988 e 1989. Tratar-se-á da peça referida no catálogo como Busto Palma, c. 1775-85, atualmente em depósito no Museu Aleijadinho em Ouro Preto, Minas Gerais (Martí, Folha de São Paulo [online], 13 out. 2014).

Daniel Peres, 2018


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Publicações


Material Gráfico


Fotografias

José Blanco, Alberto da Costa e Silva (à data Embaixador do Brasil em Portugal), Roberto Gulbenkian, José de Azeredo Perdigão e Pedro Tamen (da esq. para a dir.).
José de Azeredo Perdigão (à dir.)

Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Serviço de Exposições e Museografia), Lisboa / SEM 00403

Pasta com documentação referente à produção da exposição. Contém correspondência referente ao transporte internacional de obras e a valores de seguro, e dossiê de imprensa «Extraits de Presse. Art et Sacré. Le Baroque du Brésil. Collection João Marino. Frans Krajcberg. 9 mars – 25 juin 1988. Centre Culturel de Boulogne-Billancourt». 1988 – 1990

Biblioteca de Arte Gulbenkian, Lisboa / Dossiê BA/FCG

Coleção de dossiês com recortes de imprensa de eventos realizados nas décadas de 80 e 90 do século XX, organizados de forma temática e cronológica. 1984 – 1997

Arquivos Gulbenkian (Serviço de Exposições e Museografia), Lisboa / SEM-S007-P0236-D01373

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG, Lisboa) 1988

Arquivos Gulbenkian (Serviço de Exposições e Museografia), Lisboa / SEM-S007-P0236-D00730

6 provas, cor: aspetos, (FCG, Lisboa) 1988

Arquivos Gulbenkian (Serviço de Exposições e Museografia), Lisboa / SEM-S007-P0236-D00731

3 provas, cor: aspetos, (FCG, Lisboa) 1988

Arquivos Gulbenkian (Serviço de Exposições e Museografia), Lisboa / SEM-S007-P0236-D00732

11 provas, p.b: aspetos (FCG, Lisboa) 1988


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