De l'Intranquillité

Festival de l'Incertitude

Exposição temática que abria o Festival de l’Incertitude, com curadoria de Paulo Pires do Vale. A mostra punha em diálogo artes visuais e literatura, em torno da biblioteca particular de Fernando Pessoa, aprofundando a noção de desassossego.
Exhibition for the opening of the “Festival de l’Incertitude”, curated by Paulo Pires do Vale. The show presented an interplay between the visual and literary arts around Fernando Pessoa’s private library, examining the concept of “disquietness”.

Exposição de abertura do Festival de l'Incertitude, iniciativa desenvolvida pela Delegação em França da Fundação Calouste Gulbenkian, por ocasião dos quinhentos anos da publicação da Utopia de Thomas More. Do programa, comissariado por Paulo Pires do Vale, faziam parte exposições, ateliês abertos, encontros, ciclos de cinema e conferências, que no seu conjunto constituíam, usando as palavras do curador, uma celebração da incerteza como «espace spacieux des possibles» (Festival de l'Incertitude [folheto], 2016, p. 2).

Chamando a atenção para os perigos da promoção da estabilidade (ilusória) que marca a contemporaneidade, este festival surgia como uma tentativa, por parte da Delegação em França, de contribuir para uma mudança de paradigma, assente no modo de encarar a incerteza não como algo negativo, mas positivo e necessário para a construção de uma sociedade melhor e mais justa.

No ensaio «Imagination et autruité», de Pires do Vale, incluído no folheto do festival, o visitante podia encontrar uma contextualização e os fundamentos da ideia defendida pelo curador e apresentada no festival: «Parce que l'incertitude et le vide nous font peur, les institutions cherchent à rassurer les consciences et à promouvoir une stabilité (illusoire). Elles privilégient la sécurité, les certitudes qu'assure l'autorité et la constitution d'identités (en apparence) fortes. […] Certitude et sécurité sont ainsi associées à la répétition du déjà-connu, à l'habitude, à la tradition dont nous héritons, si souvent tenue pour intouchable – et sont une façon de neutraliser la différence, l'autre, la proposition qui vient remettre en cause l'état de choses présent.» (Ibid.).

A reflexão proposta sobre a ideia de incerteza desdobrava-se em dois momentos: o primeiro centrado no conceito de inquietação, e o segundo no papel da utopia na cultura contemporânea. A estes dois momentos interrelacionados correspondiam duas exposições – «De l'intranquillité» e «Du possible» –, às quais estavam associadas conferências, que apresentavam diferentes abordagens sobre tais noções.

Seguindo uma linha curatorial explorada por Pires do Vale desde «Tarefas Infinitas: Quando a arte e o livro se ilimitam» (Galeria de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian, em 2012), marcada pelo diálogo entre artes visuais e literatura, estas duas mostras possuíam como elo de ligação a Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, que permaneceu em exposição ao longo de todo o festival.

Esta foi a primeira vez que tais exemplares, que haviam pertencido ao autor de O Livro do Desassossego, saíam das reservas da Casa Fernando Pessoa e viajavam para fora de Portugal. O modo como seriam apresentados ao público foi uma das principais preocupações do curador, que convidou um artista para conceber uma solução expositiva. A escolha recaiu sobre Pierre Leguillon, artista francês que tem vindo a refletir sobre o livro na era digital, em mostras como «Codex» (CCA Wattis Institute for Contemporary Art, 2014). Como resposta, Leguillon concebeu uma instalação a partir da referida biblioteca, integrando-a.

A exposição «La Bibliothèque particulière de Fernando Pessoa. Tesouro transnacional» (2016) adaptava a biblioteca de Pessoa àquele espaço, que lhe era estranho, e simultaneamente refletia o olhar do artista francês sobre ela, à luz dos acontecimentos políticos do momento. Como o próprio explica, numa entrevista concedida à revista online Place: «J'ai pensé cette œuvre comme une forme de réponse au Brexit qui venait d'être voté… Avec ce travail sur la bibliothèque de Pessoa, je voulais montrer qu'une certaine idée d'une culture européenne et universaliste était, au-delà d'Internet, en train de se perdre.» (Sadeg; Reverseau, Place, n.º 1, jan. 2019)

Os livros em exposição representavam quase setenta por cento da referida biblioteca, ficando de fora alguns exemplares, por questões de conservação ou formato. Apresentados numa vitrina de parede que percorria, à altura do olhar, o perímetro da sala, estes livros foram dispostos seguindo a ordem de catalogação da Casa Fernando Pessoa, sendo a sua identificação feita através do título presente na lombada.

Esta espécie de prateleira envidraçada, fechada, concebida pelo artista, não só conferia àqueles volumes um sentido de unidade, remetendo para o universo eclético de interesses do seu antigo proprietário, como também os elevava ao estatuto de relíquia. Esta forma de apresentação, em que todos os livros se encontravam fechados, reforçava a sua inacessibilidade, exigida por razões de conservação.

Toda a marginália – «notas que o escritor deixou nas margens, capas, contracapas, por vezes suporte de poemas completos, manuscritos a lápis» (Lusojornal, 5 out. 2016, p. 13) – constituía um conjunto único, de valor incalculável, razão pela qual se encontrava vedada.

Afastado das soluções expositivas mais convencionais, este modo de expor tornava a natureza daquele núcleo um pouco ambígua. Legendado como «Biblioteca Particular de Fernando Pessoa», aquele conjunto acabou também por se tornar um elemento de uma instalação artística.

Ao percorrer a vitrina em toda a sua extensão, o visitante dar-se-ia conta de dois aspetos peculiares: uma interrupção preenchida com uma caixa de madeira e uma zona apenas com quatro publicações. A caixa de madeira, onde foram dispostos alguns livros para consulta, possuía a inscrição «UNO Frutas y Hortalizas», e as quatro publicações que marcavam um dos cantos da vitrina tinham páginas marcadas com um cartão com a indicação «Musée des Erreurs». Em ambos os casos, trata-se de marcas resultantes da ação do artista, que o levam a afirmar: «Je me suis projeté à travers la bibliothèque de Pessoa, c'est très clair pour moi, et affirmé dans la seléction très réduite que représente le cageot par rapport à l'ensemble.» (Sadeg; Reverseau, Place, n.º 1, jan. 2019)

Este trabalho envolveu seis meses de investigação, relatados por Leguillon do seguinte modo: «Paulo Pires do Vale m'a dit que je pouvais même travailler depuis chez moi puisque l'ensemble de la bibliothèque de Pessoa était numérisé et accessible en ligne! […] J'ai d'abord remarqué qu'assez peu de livres étaient en portugais. Beaucoup étaient en français ou en anglais. Je pouvais donc les lire, ce qui changeait beaucoup de choses, n'étant pas lusophone. Ensuite, j'ai remarqué qu'assez peu de livres relevaient purement de la littérature. Il y en avait notamment plusieurs sur la chiromancie ou toutes autres sortes de sujets populaires. […] Disons que ce n'était pas aussi exotique que je le pensais, ni littéraire, et pas du tout intimidant comme je l'avais craint d'abord. Je me suis donc senti beaucoup plus légitime à investir la bibliothèque», e acrescenta: «Dans ce cas, je m'intéressais plus à la culture et la construction de la bibliothèque comme forme qu'à l'œuvre de Pessoa en tant que telle. Bien sûr, ce n'était pas la bibliothèque de n'importe qui. […] Je suis aussi allé sur place parce qu'il y avait des livres ou des magazines qui étaient hors-format, donc pas numérisés.» (Ibid.)

Na caixa de frutas, recolhida na rua, o artista reuniu uma pequena seleção de títulos que integram a biblioteca. Nos exemplares, adquiridos online, foram incluídas sobrecapas, com o intuito de. Este reforçar o seu estatuto de imagem conjunto, designado «UNO», representava, como explica Leguillon, «l'unité de la bibliothèque en quelque sorte, ramené à une moindre échelle», «le “trésor transnational”, celui que nous pouvons partager maintenant, échanger, lire, etc. Un peu comme les bibliothèques de rue» (Ibid.). Para a leitura e consulta destas obras, o visitante dispunha de uma grande mesa e bancos no centro da sala. Este espaço pretendia-se também de reflexão e debate, estando aberto a grupos, como anunciado no programa: «Séminaires, masters, centres de recherche sont invités à investir la galerie d'exposition de la Fondation. Une grande table de travail sera installée au milieu de la bibliothèque de Fernando Pessoa où les enseignants et leurs élèves pourront poursuivre leurs cours.» (Festival de l'Incertitude [folheto], 2016, p. 10)

A lógica de «arrumação» alterava-se num dos cantos da vitrina. Neste, encontravam-se quatro publicações relacionadas com Portugal e que aludiam à construção de mitos: Regresso ao Sebastianismo, de Fernando Pessoa; o n.º 462 da revista italiana Domus, de maio de 1968, cuja capa foi criada por Lourdes Castro; o volume da coleção «Petite Planète» sobre Portugal, dirigido por Chris Marker; e um exemplar de The Stratagem and Other Stories, de Aleister Crowley, que havia pertencido a Pessoa e que de modo algo rocambolesco acabara na posse do artista francês. Estas estavam dispostas de modo a tornar as capas visíveis.

Como o cartão anexado indicava, tratava-se de elementos da «coleção» do Musée des Erreurs, um museu fictício criado pelo artista e que encontrou espaço nesta instalação por um condicionalismo da sala de exposições. Na entrevista anteriormente citada, Leguillon explica: «Je tenais absolument à ce qu'on soit pris physiquement à l'intérieur de cette bibliothèque, encerclé. Mais il y avait dans un angle de la pièce un humidificateur-ventilateur… Or il n'était pas possible, pour des raisons de conservation, d'exposer des livres venant de la Casa Pessoa au-dessus de cet appareil, ni de le déplacer. La Fondation Gulbenkian avait donc décidé de ne pas construire de bibliothèque à cet endroit. Et là, j'ai dit: “non, non, ce n'est pas possible […].” Alors ils ont construit une étagère, laissée vide. Et dans cette étagère, j'ai présenté quatre livres qui appartiennent à la collection du Musée des Erreurs.» (Sadeg; Reverseau, Place, n.º 1, jan. 2019). Esta área podia igualmente ser encarada como uma espécie de assinatura do artista, uma vez que no espaço de exposição não se encontrava qualquer explicação relativa à sua intervenção, estando apenas legendada a caixa de madeira com livros (Tesouro transnacional (à M. Ferdinan Personne), 2016).

A instalação de Leguillon estendia-se à sala seguinte, onde foram apresentados, nas paredes, fac-símiles de cartas astrológicas traçadas por Pessoa e, em vitrinas, uma seleção de livros escolhidos por Paulo Pires do Vale, alguns marcados pelo artista com cartões de visita de figuras reais ou fictícias, na linha do seu projeto Oracles: Artists' Calling Cards, e que o aproximava do poeta português, que também criara cartões de visita para os seus heterónimos, como o de Alexander Search, aí incluído. A este núcleo central juntava-se uma seleção de trabalhos em filme, vídeo e instalação de artistas portugueses e estrangeiros, que, de formas distintas, remetiam para a multiplicidade de realidades ou possibilidades.

A exposição abria com a instalação Golden Sentence (Il y a un trou dans le réel) (2005-2014) de Dora García, a qual instigava o espectador ao exercício da imaginação. Metaforicamente, «um buraco no real» pode ser lido como espaço desconhecido e perigoso, mas também como a existência de dimensões paralelas ou desdobramentos, relacionando-se com a poesia de Pessoa.

A inquietação e o desconforto perante a ideia de um lugar escuro que não se conhece estão igualmente presentes nas situações criadas em Destruição (1975), de Fernando Calhau, e Untitled (vulture in the studio) (2002), de João Onofre. Na primeira, a destruição da imagem dá lugar a um plano negro, desprovido de informação, que pode ser assustador, mas também aliciante se o considerarmos uma espécie de grau zero. No trabalho de Onofre, a mudança não ocorre pelo apagamento da imagem do artista e da sua realidade, mas através da destruição da ordem. Um abutre movimenta-se no ateliê do artista. A situação de cativeiro deixa-o claramente confuso e perturbado. A ordem existente dá lugar ao caos e à possibilidade de novas ordens e desordens.

Usadas como elementos de um discurso sobre a inquietação, estas obras abriam-se a novas interpretações.

Para acompanhar o festival, foi produzido uma espécie de jornal que inclui toda a programação e um ensaio de Paulo Pires do Vale que servia também como texto de apoio às exposições. Algumas reproduções das obras expostas surgem ao longo da publicação.

Este festival atraiu as atenções da impressa nacional e francesa, tendo sido noticiado em vários periódicos generalistas. No entanto, ficou a faltar um olhar mais aprofundado e crítico sobre o mesmo. Deve-se, contudo, mencionar, pela sua relevância para a divulgação da instituição e da sua atividade em Paris, a entrevista de William Massey ao então diretor da Delegação em França, João Caraça, publicada no L'Officiel Art, na sequência da inauguração do Festival de l'Incertitude.

Mariana Roquette Teixeira, 2020


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

Destruição

Fernando Calhau (1948-2002)

Destruição, 1975 / Inv. IM6


Eventos Paralelos

Ciclo de conferências

Les Conférences

7 out 2016 – 10 dez 2016
Fundação Calouste Gulbenkian / Delegação em França – Fondation Calouste Gulbenkian – Délégation en France
Paris, França
Ciclo de cinema

Les Projections de Films

3 nov 2016 – 26 nov 2016
Cité Internationale des Arts
Paris, França
Programa cultural

Festival de l'Incertitude

4 out 2016 – 18 dez 2016
Fundação Calouste Gulbenkian / Delegação em França
Paris, França

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Conferência «Nistzseche et le "Peaut-être"», proferida por Maria João Mayer Branco.
Conferência «Euripide. L'Utopie des Femmes» proferida por Claire Nancy. Claire Nancy (à esq.) e Miguel Magalhães (à dir.)
Conferência «Des Utipies non Alignées», proferida por Oulimata Gueye
Conferência «À la Place de l'Autre Travailler avec d'Autres noms», proferida por Nicolas Giraud
Conferência «Le Livre de l'Intranqulité. Un Guide de Suivie pour nos Jours», proferida por Richard Zenith
Conferência «8 Février. Un Atelier en Mouvement. Ravissements, Chimères et Merveilles de l'Incertitude et de l'Improvisation» por Federico Nicolao. Federico Nicolao (à esq.) e Miguel Magalhães (à dir.)
Conferência «Art et Science de la Couleur. L'Or des Œuvres», proferida por Michel Menu
Conferência «En Situation d'Incertitude Radicale ce que Peut une "Œuvre-enquête"», proferida por Franck Leibovici. Franck Leibovici (à dir.) e Miguel Magalhães (à esq.)
Pierre Leguillon (ao centro)
Paulo Pires do Vale (à esq.) e Guilherme d'Oliveira Martins (ao centro)
João Manuel Caraça (à dir.)
Paulo Pires do Vale (à esq.) e Luís Filipe Castro Mendes (ao centro)
Guilherme d'Oliveira Martins (ao centro) e Pierre Leguillon (à dir.)
Pierre Leguillon (ao centro) e João Manuel Caraça (à dir.)

Multimédia


Documentação


Periódicos


Fontes Arquivísticas

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 126257

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 126286

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 126246

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 124771

Coleção fotográfica, cor: conferência de Maria João Mayer Branco (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 124772

Coleção fotográfica, cor: conferência de Claire Nancy (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 124775

Coleção fotográfica, cor: conferência de Oulimata (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 124779

Coleção fotográfica, cor: conferência de Nicolas Giraud (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 124806

Coleção fotográfica, cor: conferência de Richard Zenith (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 124735

Coleção fotográfica, cor: conferência de Federico Nicolao (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 124745

Coleção fotográfica, cor: conferência de Michel Menu (FCG-Délégation en France, Paris) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 124757

Coleção fotográfica, cor: conferência Franck Leibovici (FCG-Délégation en France, Paris) 2016


Exposições Relacionadas

Du possible

Du possible

2016 / Fondation Calouste Gulbenkian – Delégation en France, Paris

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