Salette Tavares. Poesia Espacial

Exposição individual antológica da artista Salette Tavares (1922-1994). Retoma o estudo de um acervo relativamente esquecido e desconhecido do grande público, apresentando a artista que se destacou nas décadas de 60 e 70 do século XX como figura ímpar na história do experimentalismo em Portugal.
Solo retrospective exhibition on artist Salette Tavares (1922-1994). The show presents the artist, who stood out in the 1960s and 1970s as an unmatched figure in Portuguese experimentalism, by examining this relatively-unknown collection.

«Salette Tavares. Poesia Espacial» foi a primeira exposição individual dedicada à artista no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, onde esteve patente de 17 de outubro de 2014 a 25 de janeiro de 2015.

A exposição de caráter antológico propôs-se colmatar o pouco estudo que havia sido dedicado à obra da artista desde o final da década de 70 do século XX. De facto, apesar das mostras organizadas em 1999 e em 2010 – respetivamente «O Experimentalismo Português entre 1964 e 1980» (Fundação de Serralves, 17 set. a 28 nov. 1999) e «Salette Tavares. Desalinho das Linhas» (Centro Cultural de Belém, 21 mar. a 18 abr. 2010), que permitiram evocar e homenagear a sua figura – nunca antes a obra completa de Salette Tavares havia sido reunida com o objetivo de transmitir ao público o contributo e a influência que a artista, poetisa, teórica e crítica de arte teve para a cultura e para a história da arte contemporâneas, inclusive no plano internacional.

Salette Tavares (1922-1994) inicia-se nos circuitos da literatura e da poesia com a publicação da sua primeira (e experimental) obra poética, Espelho Cego (1957), depois de ter estudado Ciências Histórico-Filosóficas na Universidade de Letras de Lisboa (1943-1948). Distinguindo-se como uma das primeiras bolseiras «da então recentemente criada Fundação Calouste Gulbenkian» (Alves; Rosas, Salette Tavares. Poesia Espacial, 2014, p. 14), especializa-se em Estética, entre França, onde estuda com Mikel Dufrenne e Étienne Souriau, e Itália, com o mestre (e amigo) Gillo Dorfles.

Apesar das muitas viagens – desde Lourenço Marques, atual Maputo, que aos dez anos de idade trocara por Sintra –, as memórias das brincadeiras de infância nunca a abandonam. Num Portugal vergado sob o peso da ditadura salazarista, mais do que nunca a palavra – censurada ou permitida – provoca-a e contamina-a. A herança das pesquisas dada e surrealistas, o que em França, em Itália e, sobretudo, no Brasil então se faz de poesia visual e concreta influenciam o seu jogo com a poesia.

Em 1964, num ano particularmente criativo, visita os Estados Unidos da América – percorre Nova Iorque, Filadélfia e Chicago; publica Concerto em Mi Maior para Clarinete e Bateria, o seu segundo livro de poemas; e ainda Brin Cadeiras, no primeiro caderno de Poesia Experimental – revista organizada por António Aragão & Herberto Helder (n.º 1, 1964), e António Aragão, E. M. de Melo e Castro & Herberto Helder (n.º 2, 1966) –, dando início àquela que será uma das colaborações mais participativas no seio da PO.EX. No ano seguinte, começa a lecionar Estética na Sociedade Nacional de Belas-Artes de Lisboa, lições essas que até 1969 publicará na revista Brotéria.

Para Salette Tavares, e para a PO.EX. – coletivo português de vanguarda dedicado à poesia experimental –, a palavra é a matéria-prima por excelência, e entende-se segundo o padrão sugerido por James Joyce (1882-1941) na expressão «verbi-voco-visual», ou seja, exigindo a quem com ela se depare a utilização de todos os sentidos. De facto, os caminhos seguidos pela poesia experimental ultrapassam a palavra escrita, alargando o espectro a outros formatos então incorporados na poesia gráfica e na poesia espacial, como então se passam a designar.

Ditada por um «absoluto “rigor aleatório”» (Nicolau, As Palavras em Liberdade, 2015, p. 6), a palavra é lida, rescrita, dita e repetida, gaguejada, esquartilhada e inteligentemente recomposta, com a violência desenfreada e insinuante de um «registo lúdico, irónico e transgressivo» (Alves; Rosas, Salette Tavares. Poesia Espacial, 2014, p. 14), criando assim oportunidade para a liberdade da sílaba, do fonema e da onomatopeia, que ganham uma presença muitas vezes valorizada pela oralidade.

Filiada na linguística e conhecedora dos ramos e da teoria que a sustentam – i.e. Teoria da Informação de Abraham Moles; pensamento estético de Worringer, de Woölfflin, de Henry Focillon ou de Umberto Eco, entre tantos outros –, a artista joga com a forma, com a grafia, com a instrumentalização e espacialização do texto tornado imagem – verbal, material ou visual. O ritmo e a própria natureza da atividade artística experimental convidam à não fidelização a um só domínio, suporte ou media, e, por isso, na investigação das potencialidades da comunicação através da palavra, Salette Tavares cria um espaço alargado de possibilidades.

É neste sentido que as kinetofonias Ru Mi Ru Mi e Taki Taki (1963/1979); as tipografias Alcantarim alfenim, Aranha, Quel Air Clair, Mer de Lyriques e Les Murmures (1963); e as intervenções – a que hoje chamamos happenings ou performancesOde à Crítica (1965), Ária à Cri Cri Cri tica (1965) e Sou Toura Petra (1974) se entendem como parte da sua produção multidisciplinar. Fosse por humor acutilante e panfletário, por análise semântica, mera brincadeira ou verdadeira crítica à academia, a sua obra reverberava uma resistência à imutabilidade e uma necessidade absoluta de comunicar, de estabelecer diálogo, independentemente das contingências da época e do indivíduo.

É assim que logo entre 1949 e 1963, Salette Tavares questiona as capacidades do texto enquanto objeto, ao produzir uma série de cerâmicas nas quais inscreve versos, frases, letras ou sinais de pontuação – como Sinhora do Ó, Jarra Pontos e Vírgulas, Peixe e Jarra Ferida. Com Parlapatisse (1979), Ourobesouro (1965), O Menino Ivo (1978) e Bailia (1979-2014), entre outros, a artista revela os frutos de um método de pesquisa continuada. Em «uma lógica de […] transfiguração» (Salette Tavares. Poesia Espacial, 2014, p. 16), estes títulos tornam-se exemplos de poesia espacial – também poemas-objeto, ou poemas-instalação –, produzidos a partir de outros formatos poéticos criados anos antes.

Parlapatisse (1979) é um pequeno biombo acrílico de quatro folhas realizado a partir da homónima kinetofonia de 1965, «um poema sonoro que conjugava termos portugueses e franceses […] [também antes] testado [numa] formalização gráfica» (Ibid.). Na obra lê-se: «esquema algorítmico para a leitura monótona dos poemas da página anterior, de 1 a 5 de 5 a 1.»

Ourobesouro (1965) materializa num objeto – caixa de cristal e ouro – uma palavra que acompanhava Salette Tavares desde a infância; e O Menino Ivo (1978), anterior kinetofonia, toma os contornos de uma tapeçaria profusamente colorida, num diálogo direto com o caráter agitado da personagem que nos é descrita.

Finalmente, Bailia (1979-2014) é um declarado e literal poema «espacializado», que tem por base Bailia das Avelaneiras, um poema da autoria do trovador galego do século XIII Airas Nunes de Santiago. O original da obra exposto na Galeria Quadrum em 1979, a propósito da exposição «Brincar», terá desaparecido por essa ocasião. Consequentemente, no âmbito de «Salette Tavares. Poesia Espacial» foi doada pelos filhos de Salette Tavares uma réplica, refeita em cobre metalizado cromado e com soldaduras a prata. A doação de uma réplica de uma obra com esta importância, com o fim de passar a integrar a coleção do CAM, é um marco fundamental para o projeto.

Na mesma categoria da espacialização cabem os Diálogos Criativos, projeto que inicia no final dos anos 50 com os seus três filhos. Entre os objet-trouvé como Cágado e Cabeça de cavalo!, ambos de 1963, numa aproximação das práticas surrealistas –, contam-se os objetos compostos por lixo e elementos vários encontrados e recolhidos na praia, e mais tarde trabalhados, apelando à invenção e resposta criativa dos recetores. Salette, os seus filhos e os amigos da família, entre os quais Maria Alice Chicó, Ana Hatherly, Paula Rego, José de Guimarães, Dulce d'Agro, Emília Nadal, entre tantos outros, participam nos Diálogos Criativos, alinhando na proposta de Umberto Eco, a «obra [de arte] aberta». Tábua encontrada pelos três! (1962); Como um Klee! «(Chico, quasi 5 anos, natal de 1961)»; Escova sem pêlo nenhum (1963); São José (1960); Pano (Paula Rego, 1967) e Pacote de Rebuçados (Ana Hatherly, 1971) são exemplo de algumas dessas «brincadeiras» que Salette Tavares manterá até ao final da vida.

Foi precisamente esse território, amplo e contaminado, pontuado de intermitências e extensível ao universo das práticas artísticas que a exposição «Salette Tavares. Poesia Espacial» procurou dar a conhecer. Afinal, a sua atividade era apenas produto de uma forma de viver simplificada, mas sempre dialogante, que Salette Tavares entretecia com o fazer artístico – o «quotidiano doméstico», «o apreço pela natureza», o «imaginário declaradamente feminino» (Ibid., p. 22) e as múltiplas funções que esse mundo cuidadosamente construído comporta – o papel de mãe, de mulher, de amiga, de crítica e de professora – deixam-se transportar, para, simultaneamente, fazer transparecer e influenciar a sua obra.

Ao longo de 98 dias de exposição, e através de uma produção visual e plástica reunida em 70 obras criadas desde o fim dos anos 50 até 1980, «Salette Tavares. Poesia Espacial» procurou dar visibilidade à vida e obra desta importante figura na cena cultural e artística de vanguarda do século XX português. Por se tratar de uma artista relativamente desconhecida do público, tanto português como internacional, a exposição teve um impacto considerável na imprensa e nos meios de comunicação social, contando com cerca de quinze referências, entre as quais se destacam as da Time Out Lisboa e as da Visão.

«Salette Tavares. Poesia Espacial» realizou-se na Sala de Exposições Temporárias do CAM. Para a museografia, foi necessária a construção de algumas paredes, de uma prateleira e de uma vitrine, além de cerca de sete plintos com medidas aproximadas de 40 × 40 × 100 centímetros de altura. O espaço foi pintado de branco na sua totalidade.

A facilidade de circulação e a visibilidade das obras foram as áreas que mais pontos reuniram na avaliação realizada pelo público nos inquéritos de satisfação, que também notam a qualidade da informação e dos textos científicos. A taxa de recomendação de visita à exposição atingiu os 98%, e a apreciação global foi acima dos oito valores.

Verificou-se um total de 39 visitas orientadas, entre escolas, público geral e convidados. A programação paralela decorreu nos moldes habituais, com destaque para as «Visitas Desenhadas», um formato que pretendeu aproximar-se da temática da exposição usando a poesia como mote para o desenho. Embora não tenha sido contemplada na programação inicial, a exposição beneficiou ainda da ação Dia Positivo, criada pelo artista contemporâneo Vasco Araújo, acompanhado por uma equipa de performers, que partiu da obra de Salette Tavares.

Madalena Dornellas Galvão, 2019


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

S/Título

Graça Pereira Coutinho (1949-)

S/Título, 2014-2015 / Inv. 15DP4019

Die Himmelfahrt des Kämpfers, der verlor (A Ascensão do Guerreiro Vencido)

Hein Semke (1899-1995)

Die Himmelfahrt des Kämpfers, der verlor (A Ascensão do Guerreiro Vencido), 1934 / Inv. 15DP4020

Bailia

Salette Tavares (1922-1994)

Bailia, 1979-2014 / Inv. 14E1754

Dia Positivo

Salette Tavares (1922-1994)

Dia Positivo, 1979 - 2014 / Inv. 15E1779

O Rato Roeu

Salette Tavares (1922-1994)

O Rato Roeu, 1979-2014 / Inv. 15E1778

Porta das Maravilhas

Salette Tavares (1922-1994)

Porta das Maravilhas, 1979 / Inv. 15E1777

S/Título

Graça Pereira Coutinho (1949-)

S/Título, 2014-2015 / Inv. 15DP4019

Die Himmelfahrt des Kämpfers, der verlor (A Ascensão do Guerreiro Vencido)

Hein Semke (1899-1995)

Die Himmelfahrt des Kämpfers, der verlor (A Ascensão do Guerreiro Vencido), 1934 / Inv. 15DP4020

Bailia

Salette Tavares (1922-1994)

Bailia, 1979-2014 / Inv. 14E1754

Dia Positivo

Salette Tavares (1922-1994)

Dia Positivo, 1979 - 2014 / Inv. 15E1779

O Rato Roeu

Salette Tavares (1922-1994)

O Rato Roeu, 1979-2014 / Inv. 15E1778

Porta das Maravilhas

Salette Tavares (1922-1994)

Porta das Maravilhas, 1979 / Inv. 15E1777


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

Em Contacto! Artistas e Curadores

out 2014
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

Appetizer. Um Pouco de Arte à Hora do Almoço

nov 2014
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

À Descoberta do CAM. Visitas de Domingo

out 2014 – jan 2015
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

Caderno de Apontamentos. Visitas Desenhadas

nov 2014
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Performance

Dia Positivo

12 nov 2014 – 14 jan 2015
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Sala Polivalente
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Margarida Brito Alves
José Brandão (à esq.), Patrícia Rosas (atrás), Salette Brandão e Teresa Patrício Gouveia (à dir.)
Margarida Brito Alves (à esq.), Artur Santos Silva e Patrícia Rosas (ao centro) e Salette Brandão (à dir.)
Salette Brandão (à esq.) e Teresa Patrício Gouveia (à dir.)
Salette Brandão e Artur Santos Silva

Multimédia


Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), Lisboa / CAM 00687

Pasta com documentação referente à produção da exposição. Contém documentação de empréstimo de obras e «condition reports». 2014 – 2015

Arquivos Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), Lisboa / CAM 00686

Pasta com documentação referente à produção da exposição. Contém documentação de empréstimo de obras, correspondência interna e externa, catálogo, recortes de imprensa, convite e planta do espaço expositivo, relatório final de exposição temporária, avaliação de satisfação do público e convite com proposta de itinerância. 2013 – 2015

Arquivos Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), Lisboa / Dossiê de Artista n.º 468

Pasta com documentação referente à produção da exposição. Contém processos de doação, certificados de autenticidade e declarações de doação entre a Fundação Calouste Gulbenkian e os doadores. 2012

Arquivos Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), Lisboa / CAM 01205

Pasta com documentação referente à produção da exposição. Contém processo de doação da obra «Bailia» (1979). 2014 – 2014

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 4673

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG-CAM, Lisboa) 2014

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 4680

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG-CAM, Lisboa) 2014


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