Transcrições e Orquestrações. Desenhos de Ângelo de Sousa

Exposição retrospetiva de desenho do artista Ângelo de Sousa (1938-2011), protagonista fundamental da cena artística portuguesa desde os anos 60. A mostra contou com o comissariado de Jorge Molder e Nuno Faria.
Retrospective exhibition of drawings by artist Ângelo de Sousa (1938-2011), a key figure in the Portuguese art scene since the 1960s. The show was curated by Jorge Molder and Nuno Faria.

Por iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, teve lugar nas galerias do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP) a exposição retrospetiva de desenho do artista português Ângelo de Sousa (1938-2011).

Ângelo de Sousa foi um protagonista fundamental da cena artística portuguesa desde os anos 60 do século XX. Artista de múltiplos recursos e disciplinas, também com uma intensa atividade como docente, a sua obra foi desenvolvida através de diversos suportes: da pintura à escultura, da instalação ao desenho, da gravura, serigrafia e cerâmica à fotografia e ao cinema experimental. A sua longa carreira foi pautada por uma série de exposições individuais e coletivas.

Em 2011, Bernardo Pinto de Almeida publica uma extensa monografia sobre o artista, em que considera que a obra de Ângelo de Sousa «foi, desde o início, marcada pela presença de uma subtil inscrição, no seu próprio interior, de um modelo construtivo». Pinto de Almeida sublinha que «Ângelo de Sousa cedo se autonomizou em poéticas individualizadas. Aliando depuração e estilização formal […] à atenção, nas suas representações (então figurativas), à simplificação dos elementos no espaço» (Ângelo de Sousa. Lógica da Percepção, 2011, pp. 19-24).

Sobre a identidade e diversidade de suportes em que o artista trabalhou, «como se nenhum território lhe fosse estranho», Jorge Molder, então diretor do CAMJAP, escreveu no catálogo desta exposição de 2003: «Estes territórios não são porém fixos, sentimos as circulações que entre eles desenvolve.» Depois, referindo-se à especial dedicação ao desenho, Molder escreve: «Há nestas coisas que encontrar um [território] que é sempre mais que os outros, por anterioridade, por importância, por uma outra razão qualquer. Na obra deste artista, este é seguramente o desenho, como sendo uma espécie de origem ou matriz que parece pressentirmos a cada momento ou movimento, seja ele desenho, seja escultura, seja vídeo ou pintura.» (Transcrições e Orquestrações…, 2003, p. 12)

Molder acrescenta que a partir de uma «tal matriz», Ângelo de Sousa «copia, combina articuladamente, trama… […] É este o carácter desta obra, em que o desenho desenha os seus diferentes destinos, o desenho, o vídeo, a pintura, a escultura» (Ibid.).

Sob o título «Transcrições e Orquestrações», a mostra deu conta da vasta obra de desenho do artista, num projeto comissariado por Jorge Molder e pelo crítico de arte Nuno Faria, em estreita colaboração com o artista, que contribuiu ativamente na seleção das obras.

O desenho é uma constante na obra de Ângelo de Sousa, afirmando-se como uma atividade autónoma ao longo da sua carreira. Num universo de aproximadamente 11 mil desenhos que representam a obra de Ângelo de Sousa, foram escolhidos cerca de 800 para apresentar ao público. O critério de seleção obedeceu à vontade de mostrar desenhos que ilustrassem o contexto criador de Ângelo e a forma abundante como esses trabalhos se desenvolveram.

O projeto da exposição pretendeu refletir igualmente o trabalho de alguém para quem a cronologia da obra era um elemento pouco significativo e cuja forma de trabalhar e de pensar o ato criador constituía um processo de permanentes transformações. O título da exposição antecipa, por isso, a essência dos trabalhos apresentados. Nas palavras de Jorge Molder, o conjunto de trabalhos selecionados deixava «ver a obra de desenho deste artista, mas também o que nela desenhar representa» (Ibid., p. 13).

O comissário Nuno Faria travou uma conversa-entrevista com o artista, inserida no catálogo da exposição, em que as perguntas sistematizam um «interrogatório cerrado a tudo o que poderíamos querer saber sobre o desenho de Ângelo de Sousa: de onde vem este desenho? O que é este desenho? Para onde vai este desenho?» (Transcrições e Orquestrações…, 2003, p. 13).

José Gil, profundo conhecedor da obra de Ângelo de Sousa, assina o ensaio «O plano flutuante», também disponível no catálogo, onde o autor «define uma investigação que procura tanto as forças invisíveis que o trabalho de A.G. desencadeia[,] quanto as formas, as alusões e os pormenores da real realidade que em todos os lados dela encontramos» (Transcrições e Orquestrações…, 2003, p. 13).

A exposição apresentou 41 telas de 2003, realizadas a partir de desenhos de várias épocas; 709 desenhos, datados de 1955 a 2001; 48 desenhos do livro Árvores, publicado em 1989; e 55 desenhos do livro 75 Desenhos, publicado em 1991. Os materiais e técnicas representados foram: tinta-da-china, lápis grafite, guache, lápis de cor, marcador Flo-Master, esferográfica, carvão, caneta, pastel de óleo e lápis de aguarela.

No átrio que precede a galeria do CAMJAP, foi disposta uma dupla fileira de grandes telas coloridas, que se confrontavam com um vasto conjunto de pequenos desenhos a preto-e-branco. Este conjunto de obras introdutórias preparava o percurso para a diversidade de formas e temas, de técnicas e tempos, explicitando também a unidade de ação e pensamento que sustenta o corpo da obra de Ângelo de Sousa.

Como o projeto expositivo elucidou, o trabalho de Ângelo avançou muitas vezes por uma via experimental, através de uma fórmula mínima – por exemplo, o simples traçado de uma linha. Nesse sentido, José Gil considerou: «Os desenhos de Ângelo […] tomam à letra a velha ideia de tentativa, e, sobretudo, a de experimentação que ela recobre.» (Transcrições e Orquestrações…, 2003, p. 30) O autor refuta uma ideia generalizada de que «ao desenho falta qualquer coisa, valendo apenas como esboço. […] Mesmo (ou porque) “esboço”, o desenho guarda qualquer coisa do segredo da origem da pintura» (Ibid.).

Analisando a mesma ideia, Nuno Faria observa: «Ângelo fala-nos do desenho como abertura, como lugar onde se dá a ver. São banais os motivos, são reconhecíveis as formas, mas, ao surgirem, o que revelam não são eles mesmos ou o acto de desenhar, o que tornam visível é o movimento do próprio surgimento, da origem, como nos indica José Gil.» (Transcrições e Orquestrações…, 2003, p. 72).

Às perguntas «É possível nomear estes desenhos […] sem recorrer à comparação com a pintura ou com a escultura?» e «O que é que os torna desenhos?», o artista respondeu: «No caso do universo de desenhos que foram selecionados para a exposição, trata-se de coisas que, à partida, eram auto-suficientes, que eram exploradas. Às vezes são extremamente primários, não têm grandes recursos, uns tracinhos, umas manchas, etc. Mas de qualquer maneira, são extremamente auto-suficientes, enquanto se fazem, fazem-se, ou seja, estão a ser descobertos durante.» Por oposição à pintura ou à escultura que, como o artista referiu, exigem um «pré-projecto» (Transcrições e Orquestrações…, 2003, p. 78).

Como atividades complementares, foram organizadas várias visitas guiadas à exposição durante o período em que esteve patente.

Editado pelo CAMJAP, o catálogo inclui, como já foi referido, uma apresentação de Jorge Molder, um ensaio de José Gil e a transcrição de uma conversa entre Nuno Faria e Ângelo de Sousa. Integra ainda o currículo do artista e várias reproduções dos desenhos que figuraram na exposição. Segundo Jorge Molder, «para fazer justiça não só à qualidade mas igualmente à enorme produção do artista», tornou-se necessário integrar na monografia «um número muito grande de imagens de trabalhos: 531» (Carta de Jorge Molder para Emílio Rui Vilar, 11 set. 2003, Arquivos Gulbenkian, CAM 00520).

Sobre o catálogo, o crítico de arte Nuno Crespo destacou que «a sucessão e o movimento dos desenhos imprimem a este livro um ritmo que sai das reproduções e atinge o leitor, um ritmo só perturbado pelas elegantes e suaves interrupções dos textos: um texto crítico de José Gil e uma entrevista, adequada à grandeza do trabalho e do artista, perspicazmente conduzida por Nuno Faria. […] este catálogo faz justiça a esse trabalho conseguindo devolver a maravilha da visão das centenas de obras da exposição» (Crespo, Público, 20 dez. 2003).

A repercussão crítica da exposição foi bastante alargada, tendo sido possível reunir diversos artigos de imprensa. A título exemplificativo, destacamos as impressões de alguns autores.

José Luís Porfírio considerou que «esta é uma exposição onde se navega não no tempo, embora a memória nos assalte aqui e ali e os desenhos do menino Ângelo sejam também memória pessoal, mas num espaço tenso, onde o artista inventa ou descobre evidência, iluminações tão instantâneas quanto fugidias, mas repetidas, ritmadas, orquestradas, numa oscilação onde o ritmo da descoberta e redescoberta é fundamental para o visitante» (Porfírio, Expresso, 1 nov. 2003, p. 40).

Na crítica que dedicou à exposição, João Pinharanda qualificou a mostra como uma «propositada e consciente exposição epistemológica do sistema de produção artística» de Ângelo de Sousa, construída em volta das «inteligentes soluções de montagem (cruzando tempos e formas)» (Pinharanda, Público, 25 out. 2003).

Segundo Jorge Listopad: «A exposição […] forneceu, com os seus desenhos, uma inesperada esperada alegria provocada pelas linhas simples nada simples, pelas líricas provocações do mundo escondido, porém nada em penumbra, tudo naturalmente nu, tudo à vista, tudo substantivo sem literatura. Imensa sensibilidade, sem número de achados ao natural, um outro jazz de Matisse. Nada real, tudo real.» (Listopad, JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 12 nov. 2003, p. 44)

Na sequência da exposição, ficou decidido realizar posteriormente uma retrospetiva da obra escultórica do artista. Essa exposição, «Ângelo de Sousa. Escultura», veio a ser inaugurada em fevereiro de 2006, no Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão.

Joana Brito, 2019


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Artur Santos Silva e Isabel Alçada (ao centro), Jorge Molder, Ângelo de Sousa e Emílio Rui Vilar (à dir.)
Emílio Rui Vilar (à esq.), Ângelo de Sousa (ao centro) e Artur Santos Silva (à dir.)
Ângelo de Sousa (à esq.), Artur Santos Silva (ao centro) e Jorge Molder (à dir.)
Jorge Molder (à esq.), Emílio Rui Vilar (ao centro) e Ângelo de Sousa (à dir.)
João Pinharanda
Ângelo de Sousa (à dir.)
João Pinharanda
Ângelo de Sousa (à dir.)
Carlos Nogueira (à esq.)
Carlos Gonçalinho (à esq.) e José Nunes de Oliveira (à dir.)
Nuno Teotónio Pereira
João Pinharanda (à esq.) e Miguel Nabinho (à dir.)

Periódicos


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), Lisboa / CAM 00520

Pasta com documentação referente à produção da exposição. Contém correspondência interna e externa e textos de catálogo. 2003 – 2006

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 110445

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG-CAMJAP, Lisboa) 2003

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 121719

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG-CAMJAP, Lisboa) 2003


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