Na vida de Ana Hatherly tudo parece ligar-se: as histórias de infância, a educação religiosa, a música, ou a carreira académica. Ana Hatherly é uma especialista da literatura do período barroco e a fé barroca acreditava que todas as coisas tinham sido tocadas pela mão de Deus, criador do mundo, compreendendo, por isso, uma ligação íntima invisível, um nexus rerum que conecta tudo com tudo numa cosmologia perfeita.

 

A sua formação em letras, bem como o trabalho como docente universitária, possibilitou-lhe o estudo apurado da língua de Camões. Ao trabalhar este poeta renascentista, clássico mas já com algumas tendências maneiristas, descobriu a capacidade da língua em se deixar absorver pelo som, pela textura, pela imagem.

 

Ora, partindo do célebre vilancete camoniano «Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura / Vai formosa e não segura», Ana Hatherly compõe um conjunto de trinta e uma variações a que chamou Leonorana. A variação, sendo uma forma musical que se serve da repetição da melodia com pequenas alterações, celebra o ritmo naquilo que ele tem de mágico, embalador. O seu profundo conhecimento da música barroca, do canto lírico, permitiu-lhe levar para a página branca da escrita ou para a folha do desenho o universo do som e do silêncio. No encadeamento poético das palavras, do compasso, da tonalidade, Ana Hatherly procede, então, à transformação do poema em música.

 

Do mesmo modo, a obra da desigualdade constante dos dias de Leonor é uma composição ruidosa cheia de vagas que se entrelaçam numa energia rodopiante que transborda para lá dos limites de um suposto retângulo de imagem. As palavras dão lugar ao arabesco obrigando a uma releitura do espaço do poema-imagem.

 

 

JB

 

Setembro de 2010