«Ut pictura Poesis»

As Escolhas das Curadoras: os dois retratos de Fernando Pessoa, por Almada Negreiros, 1954 e 1964, são a escolha de Ana Vasconcelos.
13 jan 2021

Em 1954, por encomenda do restaurante «Irmãos Unidos», no Rossio, Almada Negreiros executa uma grande pintura a óleo sobre tela, na qual representa Fernando Pessoa. A pintura é feita durante o verão, na quinta de Bicesse, no Estoril, segundo Sarah Affonso, mulher do artista e também ela pintora, num local do jardim «onde a luz, coada pelas ramagens, era linda». Esta luz suave, quase doce, impregna toda a pintura, reforçando a aura do poeta, retratado a uma mesa de trabalho, sobre a qual se veem, no canto iluminado pelo sol, os dois volumes publicados da revista Orpheu. É para a Orpheu que se dirige o olhar de Pessoa, destacando-se o número dois que preenche a capa do segundo volume, que poderá ter sido uma proposta gráfica de Santa-Rita Pintor, artista que nesse número publica quatro trabalhos seus em hors-texte, a página inteira.

 

José de Almada Negreiros, «Retrato de Fernando Pessoa», 1954. Exposição permanente da Casa Fernando Pessoa – Depósito Museu de Lisboa – Câmara Municipal de Lisboa

 

O café-restaurante «Irmãos Unidos» tinha sido local de reuniões do grupo do Orpheu por nele trabalhar Alfredo Pedro Guisado, um dos seus membros e irmão do dono. Por ocasião de grandes obras de remodelação do espaço, este último encomendou a Almada uma pintura que deveria referir o momento do Orpheu para acompanhar uma placa comemorativa já aí existente. A encomenda não especificava um tema e foi Almada quem, após dois ensaios que não tiveram seguimento (pelo facto de o orçamento dessas pinturas exceder o valor acordado como pagamento – 30 contos ou 30 mil escudos, o que atualmente seriam cerca de 150 euros), se decidiu pelo retrato de Pessoa, o principal mentor da revista (a par com Mário de Sá-Carneiro).

Por si só, esta pintura seria já uma referência incontornável na arte portuguesa da segunda metade do século XX: pelo autor, que vivera muito novo a aventura de Orpheu e era, em 1954, um dos únicos sobreviventes do grupo inicial1; pela extraordinária representação de Pessoa, que surge como um ícone, não apenas do Orpheu, mas da cultura portuguesa do século passado (da qual o próprio Almada era já, nesse mesmo ano, um dos grandes protagonistas).

No entanto, esta tela não só se desdobrou numa segunda obra no espaço de dez anos, no que se pode considerar um invulgar caso de reinterpretação de uma pintura pelo seu próprio autor, como foi protagonista de um dos mais mediáticos leilões da arte portuguesa do século XX, a partir do qual os valores de algumas obras portuguesas sofreram uma merecida valorização inesperada.

A 14 de janeiro de 1970 era vendido em leilão, e no próprio local, todo o recheio do restaurante «Irmãos Unidos», incluindo a pintura realizada por Almada. Muitas pessoas assistiram ao leilão, que prometia dar que falar, sobretudo pela pintura. O que de facto aconteceu.

 

Capa da revista «O Século Ilustrado», 7 de fevereiro de 1970

 

Com uma primeira licitação de 50 mil escudos, a tela atingiria os 1300 contos2 no espaço de poucos minutos, um valor absolutamente record em transações de pintura em Portugal3. Quem licitou foi Joachim Mitnitzky, que agiu em representação da sociedade que detinha com Bernardo Menezes, uma das mais famosas casas de decoração e antiguidades em Lisboa da época e que foi responsável, pouco tempo depois, pela substituição das pinturas do café «A Brasileira», no Chiado, numa outra operação, até aos dias de hoje, absolutamente única em Portugal.

O valor atingido surpreendeu os próprios compradores, que julgaram poder adquirir a pintura pelo valor máximo de 700 contos mas que tiveram a coragem, como Mitnitzky referiu4, de não hesitar. Estavam presentes outros compradores igualmente interessados, que desistiram perante o montante atingido.

E surpreendia ainda mais o próprio Almada que, do lado de fora do leilão, assistiu ao desenrolar dos acontecimentos. O artista conhecia o crescendo de interesse em torno da sua pintura. A Fundação Gulbenkian procurara adquiri-la anos antes mas, face ao valor de 400 contos pedido pelo proprietário do restaurante, preferira encomendar a Almada uma segunda pintura, que este executou em 1964. 

 

José de Almada Negreiros, «Retrato de Fernando Pessoa», 1964. Inv. 64P66

 

O segundo Retrato de Fernando Pessoa é uma réplica em espelho do primeiro, embora com algumas diferenças quer na composição do painel geométrico por detrás da figura de Pessoa, quer ao nível do tratamento da luz, que surge mais intensa e que, por esta razão, determinou uma paleta de cores mais fortes e contrastantes.  

Além da existência de compradores particulares interessados havia também uma preocupação crescente com a conservação de uma pintura que muitos consideravam destinada a um museu. A sua permanência no restaurante era desaconselhada numa época em que se adquiria progressiva consciência do valor da arte, comentando-se o estado de deterioração de algumas das pinturas que, desde 1925, decoravam o café «A Brasileira».

Bernardo Menezes e Joachim Mitnitzky adquiriram a pintura para a revender privadamente, o que fizeram no Salão de Antiguidades de Lisboa desse ano. A obra foi comprada pelo colecionador Jorge de Brito que, ainda em 1970, a doou à Câmara Municipal de Lisboa (pertence atualmente ao Museu da Lisboa e pode ser vista na Casa Fernando Pessoa).  

As duas pinturas formam um expressivo arco da modernidade portuguesa, ligando Fernando Pessoa, a Almada Negreiros, o «bebé do Orpheu». E este, por sua vez, ao trânsito da memória com que revisitou, ao longo da sua vida, a geração a que se sentia pertencer, a «geração de Orpheu».

 

José de Almada Negreiros, Retrato realizado para o Diário de Lisboa por ocasião da morte de Fernando Pessoa, 1935. Coleção particular, em depósito no Centro de Arte Moderna
José de Almada Negreiros, «Retrato de Fernando Pessoa», 1913. Exposição Permanente da Casa Fernando Pessoa – Museu de Lisboa – EGEAC

 

Uma particular iconografia pessoana é, assim, da responsabilidade de Almada, que persegue desde muito cedo a representação do poeta: desde o retrato mais naturalista realizado em 1913 à efígie sintetizada que surge no Diário de Lisboa por ocasião da morte de Pessoa, em 1935, passando pelos esgrafitos da fachada da Faculdade de Letras, onde Pessoa é representado com os seus principais heterónimos, até estas duas grandes pinturas que, de alguma forma, saem do tempo, simbolizando igualmente a profunda e intensa relação entre poesia e pintura.

 

Fachada da Faculdade de Letras, Lisboa. © CML | DMC | DPC | José Vicente 2013

 

Ana Vasconcelos
Curadora do CAM 

 

  1. Este grupo era constituído por Fernando Pessoa (1888-1935), Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), Alfredo Guisado (1891-1975), Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971), José Pacheco (1885-1934), José de Almada Negreiros (1893-1970), Luís de Montalvor (1891-1947) e os brasileiros Ronald de Carvalho (1893-1935) e Eduardo Guimaraens (1892-1928). 
  2. Cerca de 6 mil e 500 euros.
  3. Sobre esta venda vd. o artigo de Maria José Palla publicado na revista O Século Ilustrado de 7 de fevereiro de 1970.
  4. Vd. artigo citado.

As Escolhas das Curadoras

As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.

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