História do Jardim
Construído na década de 60, segundo projeto dos arquitetos paisagistas António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles, o Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian é um dos jardins mais emblemáticos do movimento moderno em Portugal e uma referência para a arquitetura paisagista portuguesa.
O tipo de desenho baseado numa geometria subtil, que nos oferece espaços e ambiências em vez de eixos, caminhos e canteiros, e a utilização da vegetação rompem internacionalmente com as práticas da época, para celebrar a paisagem portuguesa – de onde provém o verdadeiro Jardim Português. A reprodução de códigos da ecologia da paisagem portuguesa patente na escolha, consociação e localização das espécies vegetais, o diálogo entre a orla e a clareira, a construção do espaço com a luz mediterrânica e o copado das árvores, criam situações, “micropaisagens”, que nos são familiares, não só a nós, humanos, como à fauna silvestre que atrai.
Esta forma de trabalhar o lugar a partir das regras da paisagem é uma característica forte da escola de arquitetura paisagista portuguesa com raízes na escola alemã, e que atinge neste jardim o auge da sua expressão.
A propriedade agrícola nos sécs. XVIII a XIX
O lugar onde hoje se localiza a Fundação Calouste Gulbenkian, no centro da cidade de Lisboa, foi, no séc. XVIII, uma das portas da cidade.
Denominada Quinta do Provedor dos Armazéns, e propriedade de Fernando Larre, era uma quinta de recreio, como muitas que então caracterizavam os arrabaldes das principais cidades portuguesas, com edifício, jardim, pomar, horta, vinhas e campos de cereal.
A estrutura trapezoidal que hoje identificamos com o Jardim da Fundação, já era visível nos mapas do séc. XIX. Era definida pela estrada de Palhavã e pela Estrada do Rego, localizando-se no extremo da Estrada de S. Sebastião. Era ali o fim administrativo da cidade de Lisboa, constituído por um anel de quintas de recreio que marcavam a transição entre o espaço urbano e uma paisagem desenhada por hortas, pomares, olivais, planícies de cereal e florestas de carvalho.
O desenho do Jardim singulariza-se, no contexto do desenho do jardim moderno, pela linguagem cultural de que a vegetação é representativa. Tem como base a paisagem vernacular portuguesa na sua dimensão ecológica e cultural, que cria no interior do jardim “micropaisagens”, reconhecidas não só pelos humanos como também pela fauna que a povoa.
Em 1861 palácio e quinta são adquiridos por José Maria Eugénio de Almeida, par do reino e conselheiro de Estado, e esta aquisição vai significar uma enorme transformação deste espaço.
A quinta de recreio, com o seu palácio setecentista, vai dar lugar a um enorme parque de carácter paisagista onde é construído um outro palácio de linguagem neoclássica. Estas opções do seu proprietário refletem as profundas modificações que se passam no Portugal de então, com o início de uma monarquia liberal que olha a Europa como um símbolo de progresso e civilização.
José Maria Eugénio convida Cinatti, arquiteto cenógrafo, para construir as cocheiras do seu palácio. O Parque de Santa Gertrudes, como então seria batizado em homenagem a sua mãe, é mandado construir a Jacob Weiss, jardineiro suíço formado na escola francesa do desenho de jardins.
A obra inicia-se em 1866 e termina em 1870. Numa zona central do terreno é construído um lago, elemento polarizador de todo o espaço, de onde parte uma alameda até à entrada do palácio. Toda a área é densamente arborizada com vegetação autóctone e exótica. Segundo gravuras e relatos da época, o lago tem barquinhos, aves aquáticas e uma pequena ilha rochosa; junto a este, localiza-se um quiosque onde todas as semanas uma banda dá concertos. A vegetação é exuberante e sublinha esta franca e nobre relação entre o lago e o palácio.
Em 1883, a viúva de José Eugénio de Almeida, D. Maria das Dores Pinto, cede o Parque de Santa Gertrudes para a instalação do Jardim Zoológico e de Aclimatação de Lisboa, que aqui permanecerá durante dez anos. Esta será uma nova fase na história deste espaço, em que a componente social passa a ser uma tónica muito forte do carácter do lugar, inscrevendo-se inegavelmente na vivência da cidade de Lisboa e do país, até hoje.
O Parque no séc. XX
Muitas fotografias dos eventos no velódromo e no hipódromo de Palhavã, no início do séc. XX, chegam aos nossos dias através do arquivo fotográfico municipal de Lisboa. Irreconhecível nas imagens, o Parque de Santa Gertrudes é o protagonista destes eventos. A sua estrutura permanece quase inalterada, e é construída a pista e bancadas no local onde é hoje a Avenida de Berna. Velódromo e hipódromo são palcos de uma intensa vida social, não se sabe durante quanto tempo.
Simultaneamente a estas modificações, ocorria o Plano de Melhoramentos de Lisboa e respetivo Plano de Urbanização. Entre o processo de trocas de terreno com a Câmara Municipal de Lisboa, para ajuste da propriedade com o novo desenho das avenidas de Berna e António Augusto de Aguiar, surge, um documento de 1917 que testemunha a intenção do proprietário, Carlos Maria Eugénio de Almeida, de transformar o parque num condomínio privado, talvez o primeiro do país. A proposta, aprovada pela CML, nunca se chegou a concretizar.
Em 1943 instala-se no Parque de Santa Gertrudes a Feira Popular de Lisboa, à imagem de muitos parques de diversões que se construíram pela Europa no séc. XIX. Durante 14 anos é palco das mais animadas noites de verão que ficarão registadas na memória dos Lisboetas. Naquele espaço reunia-se a diversão, a gastronomia, o artesanato, a vida política, o teatro, a música, a dança, o comércio e a indústria.
Apesar desta intensa travessia por vária facetas da vida social lisboeta, “o carácter de parque paisagista idealizado por Jacob Weiss — jardineiro suíço contratado por Eugénio de Almeida em 1866 — permanecia quando o conselho de administração da Fundação Calouste Gulbenkian decide adquirir parte dele para aí concretizar o desejo do fundador”. (Carapinha, A.2006)
O Parque Calouste Gulbenkian (anos 60)
Em 1957 o Parque de Santa Gertrudes é adquirido pela Fundação Calouste Gulbenkian, começando aí a funcionar, no ano seguinte, os serviços de Direção, Serviço de Projectos e Obras e Serviço de Belas Artes e Museu da Fundação.
Durante o tempo que decorreu entre Janeiro de 1958 e a inauguração dos edifícios da Sede e Museu em 1969, estes serviços funcionaram em instalações provisórias localizadas junto à avenida de Berna.
Também em 1958, os arquitetos paisagistas Gonçalo Ribeiro Telles e Manuel de Azevedo Coutinho são chamados para elaborarem, respetivamente, o Projeto do Jardim das Instalações Provisórias, e um estudo de manutenção e conservação do Parque de Palhavã, que se encontrava muito danificado em virtude da utilização intensiva dos últimos anos. Este último estudo deu origem a um relatório em que se faz uma primeira avaliação do coberto arbóreo e propõe medidas de conservação e regeneração de todo o coberto vegetal do Parque.
É então criada uma equipa de jardinagem e respetivas infraestruturas, para dar seguimento, nos anos seguintes a remoção de entulho, melhoramento das condições do solo, limpeza e manutenção da vegetação, plantação sucessiva de herbáceas, arbustos e árvores para reconformação da estrutura vegetal matricial, tudo isto ao mesmo tempo que ia sendo elaborado o projeto de arquitectura paisagista.
O carácter do lugar que era este parque deveria e foi, ele próprio, determinante no projeto da conceção dos edifícios da Sede e Museu da Fundação. A este propósito é referido no Programa das Instalações da Sede e Museu: “O Parque de Santa Gertrudes, devidamente restaurado na pujança da sua vegetação, constituirá um dos espaços livres públicos de maior interesse de Lisboa; local privilegiado que certamente atrairá a população e proporcionará à Fundação possibilidades de maior divulgação das suas atividades culturais. (…) a dimensão do Parque, assim como a necessidade imperiosa de prever a continuidade da função urbanística que agora tem desempenhado, visto tratar-se de um dos pulmões da cidade de Lisboa, torna o aproveitamento do terreno condicionado, no sentido de prever a máxima libertação possível.”
A obra iniciou-se em 1963 e ficou concluída em 1969. Durante estes anos, o Serviço de Projetos e Obras, do qual fazia parte uma vasta equipa de engenheiros, desenhadores e os próprios projetistas dos edifícios e dos jardins, acompanhou todos os trabalhos, desenvolvendo interdisciplinarmente, soluções de projeto que respondiam às inúmeras questões que uma obra desta envergadura ia naturalmente levantando.
É de realçar as soluções construtivas altamente inovadoras para a época que desta interação resultaram e de que é testemunho o conjunto edifício/jardim: os sistemas de drenagem e aproveitamento de águas; todo o sistema construtivo do lago, atravessado subterraneamente pelo edifício, e a criação artificial do ecossistema húmido das suas margens; as técnicas de plantação e fixação de árvores sobre laje, entre outras.
O Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian – hoje
Nas fotografias da época 60 encontramos um jardim bem diferente do que hoje conhecemos – grandes clareiras relvadas em diálogo com jovens maciços de vegetação e alguns conjuntos de árvores herdadas do parque do século XIX.
Reconhecemos ainda os imponentes eucaliptos que de alguma forma determinaram a planta original do edifício, ou as Pimenteiras-bastardas junto ao lago, o desenho do lago e das ribeiras, assim como o anfiteatro poligonal. Em tudo o resto, este lugar foi-se transformando ao longo de 50 anos, mudando a sua fisionomia, mas não o seu carácter. Depois de em 1975 ter tido um momento de grande degradação e ter sido recuperado pelo arquiteto paisagista António Viana Barreto, resistiu à morte da floresta de ulmeiros (pela grafiose), e à amputação do seu principal eixo visual para implantação do edifício do CAM.
O Jardim transformou-se definitivamente, e a vegetação evoluiu para uma densa e heterogénea floresta, interrompida por pequenas clareiras e encerrando no seu interior o lago que consubstancia um arquétipo de paraíso. Este amadurecimento do jardim foi também a materialização da ideia que esteve na base da conceção do projeto, e a revelação do “lugar privilegiado” de Lisboa que o Serviço de Projetos e obras já adivinhava em 1958.
O Jardim que hoje encontramos, frondoso, envolvente e cheio de recantos surpreendentes, é o resultado de um diálogo muito forte entre Homem e Natureza. Neste caso, é uma situação única, na medida em que vão ser os próprios autores do projeto original a intervir, ao longo do tempo, tirando partido do crescimento da vegetação e adequando o jardim às novas solicitações dos tempos.
O Projeto de Reabilitação de 2000
Em 2000, Gonçalo Ribeiro Telles foi convidado a levar a cabo um novo projeto de reabilitação do Jardim cuja obra se iniciou em 2002, tendo terminado dez anos depois. A proposta do Arq.º Paisagista Ribeiro Telles assenta numa forte interação com o processo de maturação do Jardim, por um lado, controlando os aspetos negativos do seu envelhecimento, e, por outro, integrando os aspetos e lugares mais interessantes que o natural crescimento da vegetação foi criando.
“Mantendo a estrutura, o quadro conceptual e as espacialidades genesíacas, Gonçalo Ribeiro Telles propõe um conjunto de intervenções de ordem estética e ecológica que procuram, também, anular algumas entropias exteriores à vida do Jardim e que, de certa forma, desvirtuaram o conceito original. (…) consolida-se a orla protectora, reforçam-se vistas, redefinem-se áreas de prado e de relvado, amplia-se o sistema de percursos pretendendo-se, assim, revelar espaços não explorados que a Natureza havia desenhado. Umas vezes eles surgem de acordo com as ambiências idealizadas, outras vezes exibem espacialidades inesperadas que se oferecem como novos jardins que irrompem no jardim.” (Carapinha, A. 2006)
Foi feita uma grande operação de limpeza e desbaste da vegetação, abrindo novos percursos e zonas de fruição em áreas anteriormente inacessíveis.
Procedeu-se também ao fechamento e conformação de orlas com espécies arbustivas como a Murta, o Folhado, o Buxo e outras espécies da flora portuguesa utilizadas neste jardim desde a sua conceção inicial, muitas das quais têm mesmo sido reproduzidas nos viveiros da Fundação, salvaguardando o seu património genético.
A última fase a ser concluída foi a fase 4, com a pavimentação de trilhos e construção de uma pequena zona de estadia na margem sul do lago. É uma zona de estadia em franca relação com o espelho de água, onde se criou uma situação de exceção às duas tipologias de margem existentes no lago. O banco corrido corresponde ao muro de suporte que anteriormente definia a margem, e a superfície de calhau rolado, que estabelece a concordância altimétrica com o fundo do lago, substitui aqui a orla de vegetação lacustre que margina todo o lago.
No fim desta longa intervenção, “na pujança da sua vegetação”, surpreendente e muito confortável, o jardim está povoado em todos os seus recantos, cheio de acontecimentos programados e espontâneos, um lugar de pausa onde todos nos sentimos “em casa”.
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