Ana Vieira. Muros de Abrigo

Exposição antológica da artista Ana Vieira (1940-2016), organizada em parceria entre o Museu Carlos Machado e a Fundação Calouste Gulbenkian. A mostra veio apresentar um olhar retrospetivo sobre um corpo de trabalho sólido, persistente e original, desenvolvido pela artista ao longo de quatro décadas, desde os finais da década de 60 até àquele momento.
Retrospective exhibition on artist Ana Vieira, organised in a partnership between the Carlos Machado Museum and the Calouste Gulbenkian Foundation. The show presented a look back over the substantial, consistent and original body of work developed by the artist over four decades, from the end of the 1960s up until the time of the exhibition.

«Muros de Abrigo» foi uma exposição dedicada à obra de Ana Vieira (1940-2016), reconhecida pelos seus pares, críticos e historiadores de arte como uma das mais importantes e influentes artistas da segunda metade do século XX e início do século XXI em Portugal. Volvidos dez anos desde a última releitura do seu trabalho («Ana Vieira», Fundação de Serralves, de 3 dez. 1998 a 24 jan. 1999), a exposição antológica «Muros de Abrigo» propôs um olhar renovado, de homenagem à figura de Ana Vieira (1940-2016), que então celebrava o seu 70.º aniversário. Além disso, resultado de uma parceria entre o Museu Carlos Machado e a Fundação Calouste Gulbenkian, permitiu devolver tanto a Ponta Delgada, em São Miguel – a ilha açoriana que a viu crescer – como a Lisboa – cidade que viria a tornar-se a sua segunda casa – a produção e o pensamento artísticos que a artista, ao longo de cerca de quarenta anos, de forma gradual, mas persistente, foi maturando.

Nascida em Coimbra, Ana Vieira passa a infância nos Açores. É daí que recorda os «muros de abrigo», e a abertura diária que, em brincadeiras sozinha, fazia dessas infinitas portas para o vazio (muros, ou portas, que em termos práticos, na arquitetura rural das ilhas, servem para proteger as culturas do ar salgado). A experiência da travessia desses muros torna-se marcante: a memória de uma certa ideia de percurso aí vivida é uma herança de tal forma importante que a irá acompanhar ao longo de toda a carreira, emprestando o nome a esta exposição.

A frequência do curso de Pintura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, concluído 1965, deve ser lida como uma breve passagem de Ana Vieira pela pintura. Uma passagem que rapidamente se viu desviada para uma produção assente na procura de construções cénicas, na sugestiva manipulação de figuras e objetos e na criação de «simulacros». Construtora de ambientes, lugares, e objetos, foi através deles que a artista encontrou uma maneira de convidar o observador a percorrer sensorialmente o espaço. No entanto, frisam a artista e o curador, apesar dos «muros de abrigo» – a história efabulada da sua infância, simultaneamente obra primordial e aquela à qual se retorna eternamente –, todas as suas obras estão para lá da história e do conceito; todas elas criam autonomamente o discurso e as imagens que as vêm gerar e habitar (Ana Vieira. Muros de Abrigo, 2010, p. 21)

Segundo Paulo Pires do Vale, a narrativa que guiou «Muros de Abrigo» distingue dois momentos essenciais: um primeiro, no qual as obras punham em causa o próprio conceito e estatuto de obra de arte; e um segundo, onde outras semelhantes, insistindo nos problemas inerentes ao ato de «ver», o revelavam como um ato quase sempre mediado. No CAM, espaço da Fundação que recebeu a apresentação já feita nos Açores (10 jun. 2010 a 12 set. 2010), as obras Ambiente (1971) e Déjeuner sur l'herbe (1977) foram as obras escolhidas para dar corpo a esse primeiro momento (Ibid.).

Ambiente (1971) é composto por uma estrutura tubular, redes, várias cadeiras de madeira e um plinto que sustenta uma réplica da famosa escultura Vénus de Milo. Pendentes do teto, as redes desenham no chão o perímetro de um quadrado, para se tornarem paredes de um quarto com dimensões perfeitamente ortogonais. Escolhidas pelas suas qualidades translúcidas, estas redes-parede formam um filtro que, embora permita e incite a «ver através de» (Ibid., p. 31), se fecha ao exterior, vedando a entrada ao visitante, que então se vê invariável e infalivelmente reduzido a espectador. No espaço interior, essa situação é levada ao extremo: uma série de cadeiras vazias, estrategicamente colocadas de modo a proporcionarem a melhor visibilidade da escultura-ícone, ocupam o espaço; ao centro, sobre um plinto que a alteia, Vénus é velada por outra miríade de redes que, sem lhe tocar, caem em seu redor.

Ambiente (1971) joga com a ideia de «participação», em voga na cena artística contemporânea dessas décadas de 1960 e 70. Neste caso, o visitante é incitado a perscrutar a obra (quarto, ou casa), mas a participação – a entrada e permanência na casa – é-lhe negada, restando-lhe apenas atravessá-la com o olhar. Como refere Paulo Pires do Vale no catálogo da exposição, trata-se muito especificamente de uma tomada de posição da artista, que, numa demonstração de «insolência contra os insolentes», contesta o plinto e a moldura. De facto, é simulando ou «pacientemente [construindo] uma frágil moldura para o vazio» que Ana Vieira concretiza a saída da arte e fala de ausência. Num frequente diálogo com as noções de alegoria e de memória, os seus «simulacros» anunciam por fim a arte como esvaziada de sacralidade (Ibid., p. 28).

Inversamente, enquanto Ambiente (1971) se fecha ao espectador, uma outra obra invade o espaço público. Caído do pedestal, Déjeuner sur l'herbe (1977) – o epíteto da arte moderna – estende-se no chão, onde é performativamente interpretado. O piquenique está montado e ocupa o espaço que agora é visto, vivido e experienciado com o corpo todo. É como se ao «libertar imagens e objectos da sua própria existência material e mundana», agindo sempre sob um desígnio poético, Ana Vieira dissesse: o corpo também vê (Ramos, «Ana Vieira», 2011).

No segundo momento-chave da exposição salientado pelo curador Paulo Pires do Vale, o espelho, a radiografia e a lupa têm um papel central, permitindo o leve contorno de formas ocultas, ou a leitura de frases escritas em letra diminuta. Usados profusamente e com regularidade na sua obra, estes dispositivos propõem a aproximação do espectador integrando-o, dando a ver o que não se vê, mostrando e denunciando as dificuldades do bem-ver, «fazendo ver o não visto».

É assim que a artista vai levantando muros – mais, ou menos subtis – e (através dos recortes de silhuetas de figuras em planos de madeira), vai criando resistências, alertando para o caráter ilusório dos preconceitos acerca da visão total. Corredor (1982), peça exposta no final deste «2.º ato», é o culminar desse princípio. Questionando a perceção que temos do mundo e das coisas, é o derradeiro convite a habitar e a percorrer um longo e confinado espaço, colocando-nos em posição de nos darmos conta do impacto maior que determinados caminhos no museu podem ter no campo da visão.

Sombras, reflexos, passagens de luz, sobreposições, rastos, memórias, espaços aparentemente ocos, esvaziados, e capazes de profetizar acerca do futuro, são algumas das marcas do trabalho de Ana Vieira. As suas obras são criadas numa espécie de traçado de territórios, e encontram-se frequentemente em retirada de si mesmas, num modo de recusa que abre caminho a universos de crise, como acontece no caso de Ocultação/Desocultação (1978). Recorrendo a fiadas de tijolos pintados de preto, a primeira parte da obra é construída desenhando no chão a planta de uma casa que, embora se apresente como penetrável, não nos convida abertamente a entrar. Podemos rodeá-la, circundá-la, ou mesmo ler todas as mensagens de uma hipotética vivência, já dentro de cada uma das divisões da casa, se tivermos decidido percorrê-la, mas não a podemos habitar, e por isso também se torna catalisadora de indeterminação.

É por um conhecimento remoto desse imaginário, que, como diz, está «no raiar da invisibilidade», que Jorge Silva Melo manifesta vontade de realizar um documentário sobre a artista, com quem já colaborara anteriormente – Casa Desabitada (2004), In/visibilidade (2008-2009). O projeto, que começara por se chamar Ana Vieira: Filmar o Invisível, foi produzido pelos Artistas Unidos, com colaboração de Paulo Pires do Vale, e beneficiou de um subsídio do Serviço de Belas-Artes do CAM, acabando por adquirir o título Ana Vieira: e o que não é visto. Integrado nas atividades paralelas da exposição «Muros de Abrigo» no CAM, o documentário inaugurou na Fundação Calouste Gulbenkian a 24 de março de 2011, conseguindo realizar a estreia em televisão, na RTP 2, ainda antes de passar no 9500 Cineclube, em Ponta Delgada. Pouco depois, a Biblioteca de Arte da Fundação receberia da parte dos Artistas Unidos um núcleo documental composto por cerca de 100 catálogos de diversas exposições da artista, e de vídeos realizados no âmbito da exposição.

Dada a relevância e alcance de «Muros de Abrigo», a programação paralela incluiu as já habituais visitas guiadas com o artista em exposição e o curador, além das outras mais temáticas, à hora de almoço, ao domingo, ao fim da tarde. Tiveram ainda lugar cursos teóricos e práticos relacionados com as temáticas da exposição.

A antológica mereceu várias críticas e menções online, nos formatos audiovisuais, e em publicações de suporte físico, nomeadamente no jornal Público (Ípsilon), por Luísa Soares de Oliveira; na ArteCapital.net, por Sónia Borges; além de muitos outros, com renovado interesse após a morte da artista, em 2016.

Madalena Dornellas Galvão, 2019


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

Ambiente - Sala de Jantar

Ana Vieira (1940-2016)

Ambiente - Sala de Jantar, Inv. 78E608

Objecto - Porta

Ana Vieira (1940-2016)

Objecto - Porta, Inv. 89E609

S/ Título

Ana Vieira (1940-2016)

S/ Título, Inv. GP2227

S/ Título

Ana Vieira (1940-2016)

S/ Título, Inv. GP2228

Sem título

Ana Vieira (1940-2016)

Sem título, Inv. 10E1614

sem título

Ana Vieira (1940-2016)

sem título, Inv. GP370

Toucador

Ana Vieira (1940-2016)

Toucador, Inv. 83E565


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

Uma Obra de Arte à Hora do Almoço

jan 2011 – mar 2011
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

Encontros ao Fim da Tarde

jan 2011 – mar 2011
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

Domingos com Arte

jan 2011 – mar 2011
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Curso

Afectos, Trajectos e Conceitos: Manifestações da Arte Conceptual em Portugal

jan 2011
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Oficina / Workshop

Espaços Habitados. O Corpo como Ferramenta Viva. Técnicas Artísticas para Não-artistas

mar 2011
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Exibição audiovisual

ANA VIEIRA e o que Não é Visto

24 mar 2011
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Sala Polivalente
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

[Ana Vieira. Muros de Abrigo]

2 fev 2011
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Paulo Pires do Vale (à dir.)
Emílio Rui Vilar (à esq.), Teresa Gouveia e Paulo Pires do Vale (ao centro)
Leonor Nazaré (à esq.)
Isabel Carlos (à esq.)
Ana Vieira
Ana Vieira
Ana Vieira (à dir.)

Multimédia


Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), Lisboa / CAM 00653

Pasta com documentação referente à produção da exposição. Contém correspondência interna e externa, relatórios, programas de atividades e respetivo catálogo. 2009 – 2012

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 7169

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa) 2011

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 7168

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa) 2011


Exposições Relacionadas

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