Obra Visitante. Rembrandt, «Autorretrato com Boina e Duas Correntes do Museo»

Iniciativa «Obra Visitante»

«Obra Visitante» é o nome de uma iniciativa de programação do Museu Calouste Gulbenkian que acolhe obras de arte de coleções de Museus internacionais e as põe em diálogo com obras da Coleção Gulbenkian. Aqui, uma pintura de Rembrandt do Museo Thyssen-Bornemisza convive lado a lado com duas pinturas de Rembrandt compradas por Calouste Gulbenkian, Figura de Velho e Palas Atena, na sala dedicada à pintura holandesa.

«Obra Visitante» é o nome de uma iniciativa de programação do Museu Calouste Gulbenkian (MCG) criada para acolher obras de arte de coleções de museus internacionais, com o objetivo de as pôr em diálogo com obras da Coleção Gulbenkian, proporcionando renovadas oportunidades de estudo de natureza historiográfica. Deste modo, não só se dá visibilidade a um destacado conjunto de obras que habitualmente ocupam um lugar singular nas coleções que integram (tanto no caso da obra que «visita» como no caso daquelas que são «visitadas»), como se vai ao encontro dos diversos públicos do MCG, estimulando-lhes a curiosidade e complementando os seus interesses e experiências museais.

A pintura Autorretrato com Boina e Duas Correntes, de Rembrandt van Rijn (1606-1669), foi a primeira obra que o MCG acolheu temporariamente nas suas galerias no âmbito da iniciativa «Obra Visitante». Cedida generosamente pelo Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, sediado em Madrid, e parceiro no primeiro momento desta iniciativa, a obra, que raramente se desloca do museu para empréstimo e que nunca tinha sido mostrada em Portugal, esteve exposta na Galeria de Pintura do Século XVII do MCG, entre 29 de abril e 12 de setembro de 2022, em diálogo com as duas pinturas de Rembrandt que integram a coleção do MCG, Figura de Velho (Inv. 1489) e Palas Atena (Inv. 1488).

Ao entrar na galeria, encontravam-se dispostos dois painéis verticais cor de laranja que despertavam a atenção do visitante. No painel com maior dimensão, pensado para a apresentação da obra, disposto perpendicularmente em relação às duas pinturas de Rembrandt da coleção do MCG, encontrava-se o Autorretrato com Boina e Duas Correntes. Ao seu lado, um outro painel da mesma cor apresentava o texto de parede que contextualizava a iniciativa, da autoria de Luísa Sampaio, comissária responsável pela mostra.

Autorretrato com Boina e Duas Correntes, datado do início da década de 1640, é um dos quarenta autorretratos que Rembrandt terá realizado entre as cerca de trezentas pinturas que produziu ao longo da vida. Nome maior e incontornável da pintura ocidental, que dispensa quaisquer apresentações sumárias, Rembrandt foi experimentando e consolidando de formas distintas a prática do autorretrato, tanto a óleo como em gravura, desde 1620 até ao ano da sua morte, em 1669: «Sozinho, acompanhado, disfarçado, com acessórios, com os olhos ou com a boca muito abertos, a ler ou simplesmente a posar, o artista deixou uma galeria de imagens sobre si próprio na qual a obra do Museu Thyssen ocupa um lugar de destaque.» (Museu Calouste Gulbenkian \ Uma vida em imagens. O autorretrato de Rembrandt. Conferência, 2022)

Nesta pintura, produzida na época da sua plena maturidade como pintor – veja-se que a mesma terá sido realizada na mesma altura da sua mais célebre pintura A Ronda da Noite, pertencente à coleção do Rijksmuseum –, o artista apresenta-se vestido de preto, com gibão rematado por pele e duas correntes de ouro sob fundo neutro. Embora a indumentária seja particularmente importante para o estudo da obra, o rosto, de olhar penetrante, é particularmente cativante. São abundantes as discussões e os estudos, da autoria de numerosos especialistas de conservação e arte, suscitados por esta pintura. Num texto intitulado «Rembrandt por Rembrandt», publicado no catálogo que acompanhou a mostra, Luísa Sampaio apresenta uma súmula desses estudos. Será curioso observar, por exemplo, entre outros aspetos igualmente elucidantes, que a mão representada na pintura, na qual se poderá notar uma diferença tangível em relação ao resto da imagem, é uma parte inacabada da composição. Esta terá sido eliminada pelo artista e revelada posteriormente no contexto de um restauro.

Se este tipo de informação nos conduz a uma observação mais aturada e a uma aproximação mais profunda da prática da pintura em si e de cada obra em particular, não será irrelevante afirmar que dados como este são potencialmente indiciadores da personalidade artística de Rembrandt – sobretudo quando se trata de um autorretrato. As investigações poderão encontrar-se mais ou menos centradas em aspetos formais e analíticos, mas cabe, como coube também nesta iniciativa, refletir sobre o próprio artista. Como escreve Guilherme d’Oliveira Martins na sua nota de introdução do catálogo: «Não se trata, pois, de ver um dos mais célebres autorretratos de Rembrandt, mas de presenciarmos a invocação efetiva da extraordinária personalidade que nos visita, para além das fronteiras do tempo.» (Obra Visitante. Rembrandt: Autorretrato, 2022, p. 10)

Assim, uma outra linha de análise, que não apenas a dedicada a esta obra e ao legado extraordinário de Rembrandt, foi trazida a este contexto. Também amplamente debatidas no mundo dos historiadores e especialistas de arte, a curiosidade e as ideias que terão levado Rembrandt a voltar continuamente à categoria do autorretrato são apresentadas por Luísa Sampaio num outro texto do catálogo, intitulado «Autorretrato e função na obra de Rembrandt». É particularmente interessante perceber que, num primeiro momento, o artista se faz «representar bastante fiel “à sua imagem”, de forma deliberadamente convencional. A partir de 1629 manipula propositadamente a sua imagem num número significativo de autorretratos, muitas vezes com recurso a adereços exóticos. Poucas vezes se apresentou de maneira formal, à moda da época, cabendo essa exceção a Autorretrato do Artista como Burguês (1632, The Burrell Collection, Glasgow)» (Comunicado de imprensa, 2022, Arquivos Gulbenkian, ID: 397740).

A constante introdução de variações na indumentária, que transporta o artista no tempo ou o traz de volta ao seu tempo, ou as duas coisas em simultâneo, serviu igualmente ao pintor como meio para alicerçar o seu lugar no seio de uma longa tradição artística, na qual se igualou, ou mesmo rivalizou, com grandes mestres, como parece ser o caso do Autorretrato (1640, The National Gallery, Londres), em trompe l’œil, no qual retoma a pose de Albrecht Dürer em Autorretrato (1498, Museu do Prado, Madrid)» (Museu Calouste Gulbenkian \ Obra Visitante: Rembrandt, «Autorretrato com Boina e Duas Correntes», 2022). Os debates sobre o significado intrínseco do retorno do artista à autorrepresentação podem ser sumariados numa ambivalência curiosa, entre aquelas que idealizaram a necessidade egotista da autoanálise e da amálgama que decorre das representações expressivas do «eu» e aquelas que sugerem que o interesse comercial de fazer circular autorretratos do artista pintor são a razão de ser dos mesmos, sustentados na sageza e na capacidade de compreensão profunda do artista sobre o mercado em que se integrava. Sobre isto, afirma Luísa Sampaio: «Especialistas da obra de Rembrandt identificaram nesta tipologia de representação […] a conjugação de dois fatores determinantes: por um lado, a representação do uomo famoso; por outro, a existência de uma obra autografada da raison d’être da sua notoriedade, uma técnica pictórica de exceção. […] Este corpo impressionante de composições, suportado por uma convincente ilusão de realidade, que nos coloca perante uma característica particularmente estimulante do génio do artista, suscita a convicção de que a função (ou as funções) do autorretrato na obra do pintor, que ora insinua uma interpretação possível ora traduz uma realidade tangível, converge para a constituição de uma iconografia sem paralelo na pintura ocidental, que não cessa, e talvez seja esse o desafio supremo da arte, de nos questionar e surpreender.» (Obra Visitante. Rembrandt: Autorretrato, 2022, p. 41)

As duas obras de Rembrandt da coleção do MCG, Figura de Velho e Palas Atena, mereceram também uma (re)visitação. As suas destacadas contextualizações, a par da exemplar qualidade, saem enaltecidas desta iniciativa. Também sobre elas, Luísa Sampaio escreve um texto na mesma publicação: «Os Rembrandt da Coleção Calouste Gulbenkian». Talvez seja oportuno citar aqui o excerto em que a conservadora do MCG nos faz chegar as palavras do fundador Calouste Gulbenkian, em 1950, a propósito da sua pintura Figura de Velho: «[…] de todos estes amigos tão próximos [os meus quadros], o mais notável será sempre o Rembrandt, que revejo frequentemente tal como tinha em casa, […] banhado por uma luz sábia capaz de retirar desse admirável rosto intensa nobreza e suave serenidade.» (Ibid., p. 46)

No âmbito desta iniciativa, como já foi referido, publicou-se um catálogo, com o título Obra Visitante. Rembrandt: Autorretrato, que homenageia, em forma de dedicatória póstuma, Ernst van de Wetering, grande historiador e especialista em Rembrandt, desaparecido em 2021. Esta publicação inclui uma nota de introdução do administrador da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), Guilherme d’Oliveira Martins, intitulada «Para além das Fronteiras do Tempo», e uma nota de apresentação do diretor do MCG, António Filipe Pimentel, «Quando os Visitantes São Ilustres». Do volume constam ainda os já mencionados textos da autoria da conservadora do MCG, Luísa Sampaio: «Rembrandt, do “Reno”», «Rembrandt por Rembrandt», «Autorretrato e Função na Obra de Rembrandt» e «Os Rembrandt da Coleção Calouste Gulbenkian».

A exposição foi bastante difundida nos media, não havendo, contudo, nenhuma inscrição crítica que mereça uma referência específica.

Foi ainda organizada uma conferência com Mar Borobia, chefe de conservação de pintura antiga do Museo Thyssen-Bornemisza, convidada do MCG, que apresentou uma abordagem do lugar de destaque que a obra Autorretrato com Boina e Duas Correntes ocupa no grande conjunto de autorretratos realizados por Rembrandt. A conferência teve lugar no Auditório/Sala 1, no dia 2 de junho de 2022. O evento em sala teve tradução simultânea de espanhol para português e foi transmitido em direto no site da FCG. O vídeo integral da conferência pode ser consultado no site do evento (Museu Calouste Gulbenkian \ Uma vida em imagens. O autorretrato de Rembrandt. Conferência, 2022).

No seguimento deste primeiro capítulo, o MCG apresentou, até outubro de 2023 e na ordem cronológica que se segue, mais três momentos da iniciativa «Obra Visitante»: «Giulio Romano, Tapeçaria da Armação Jogos de Crianças», «O Vaso Canópico de Iunefer. Em Busca da Eternidade» e «Jean Dunand, O Biombo Las Cagnas.

Vera Barreto, 2023


Ficha Técnica


Coleção Gulbenkian

Palas Atena

Rembrandt Harmensz van Rijn (1606-1669) e aluno

Palas Atena, Inv. 1488

Figura de Ancião

Rembrandt Harmensz van Rijn (1606-1669)

Figura de Ancião, Inv. 1489

Palas Atena

Rembrandt Harmensz van Rijn (1606-1669) e aluno

Palas Atena, Inv. 1488


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

Homo Verus, A Mão de Rembrandt

Conferência / Palestra

Uma Vida em Imagens. O Autorretrato de Rembrandt

2 jun 2022
Fundação Calouste Gulbenkian / Edifício Sede – Zona de Congressos
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

António Filipe Pimentel e Emílio Rui Vilar, Guilherme d´Oliveira Martins, Marta Betanzos, Ana Rijo da Silva (atrás) e Luísa Sampaio (da esq. para a dir.)
Guilherme d´Oliveira Martins, Marta Betanzos, Luísa Sampaio e António Filipe Pimentel (à frente, da esq. para a dir.)
Marta Betanzos, Guilherme d´Oliveira Martins e António Filipe Pimentel (da esq. para a dir.)
António Filipe Pimentel (atrás), Marta Betanzos (centro) e Luísa Sampaio (à dir.)
Emílio Rui Vilar (ao centro)
Ana Rijo da Silva, Luísa Sampaio e João Carvalho Dias (ao centro, da esq. para a dir.)
Luísa Sampaio
Guilherme d´Oliveira Martins e António Filipe Pimentel (da esq. para a dir.)
Marta Betanzos, Guilherme d´Oliveira Martins e António Filipe Pimentel (da esq. para a dir.)
Marta Betanzos
Luísa Sampaio
Luísa Sampaio
Luísa Sampaio
Luísa Sampaio (ao centro) e João Carvalho Dias (atrás)
Isabel Mota
Guilherme d´Oliveira Martins, Luísa Sampaio, Isabel Mota e João Carvalho Dias (da esq. para a dir.)
Nuno Prego, Guilherme d´Oliveira Martins e João Carvalho Dias (da esq. para a dir.)

Multimédia


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa

Conjunto de documentos referentes à exposição. Contém materiais gráficos, artigos de imprensa, entre outros. 2022

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa

Conjunto de documentos referentes à exposição. Contém materiais gráficos, artigos de imprensa, entre outros. 2021

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 401452

Coleção fotográfica, cor: aspetos (MCG, Lisboa) 2022


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