Obra Visitante. Giulio Romano, «Tapeçaria da Armação "Jogos De Crianças"»

Iniciativa «Obra Visitante»

Obra Visitante é a denominação de uma iniciativa de programação do Museu Calouste Gulbenkian (MCG) que pretende acolher obras de arte de coleções de Museus internacionais, colocando-as em diálogo com obras da Coleção Gulbenkian, proporcionando desse modo renovadas oportunidades de estudo de natureza historiográfica, um enfoque aprofundado sobre um destacado conjunto de obras que habitualmente ocupam um lugar singular na apresentação das coleções que integram (tanto no caso da obra que «visita» como no caso daquelas que são «visitadas»), bem como dar a conhecer aos diversos públicos do MCG obras que complementam, enriquecem e promovem o interesse e a curiosidade que os mesmos procuram satisfazer.

A segunda obra visitante apresentada no contexto deste programa do MCG – que sucedeu a «Autorretrato com Boina e Correntes» de Rembrandt van Rijn, emprestada pelo Museu Nacional Thyssen-Bornemisza –, foi um precioso fragmento de tapeçaria do séc. XVI, pertencente ao acervo do Museu Poldi Pezzoli, em Milão, e esteve patente na Galeria do Renascimento do MCG entre 15 de setembro de 2022 e 16 de janeiro de 2023.

A coleção do MCG possui um valioso conjunto de tapeçarias do séc. XVI da armação (conjunto de tapeçarias com o mesmo tema) «Jogos de Crianças», composta por quatro grandes tapeçarias e dois fragmentos, produzidos em lã, seda, fio de ouro e fio de prata, a partir dos desenhos para cartões de Giulio Romano (1499-1546), pintor e arquiteto do fim do Renascimento, discípulo de Rafael. A este notável conjunto, faltava apenas um fragmento, pertencente – já na altura em que Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) adquire o seu conjunto de seis elementos, em 1920 – ao grande colecionador italiano Gian Giacomo Poldi Pezzoli. É precisamente esse fragmento que agora se apresenta no MCG, sendo esta a primeira ocasião em que é possível ver e apreciar a armação completa do conjunto «Jogos de Crianças», na modernidade.  

Disposto num painel vertical destacado pela cor azul, colocado no centro da Galeria do Renascimento, em frente das tapeçarias de parede e ao lado dos fragmentos sobre madeira da coleção do MCG da mesma armação, o fragmento denominado «A Dança» ocupava toda a extensão do painel. O texto de apresentação da iniciativa encontrava-se reproduzido no verso do painel, o que permitia que o visitante conservasse toda a sua a atenção perante a imponência da armação completa. 

O conjunto é um exemplar bem ilustrativo da qualidade artística e técnica a que a arte da tapeçaria ascendeu no século XVI, época em a mesma representava o expoente máximo de prestígio, opulência e poder dos seus proprietários, acima até da pintura em termos de valor de mercado e de notoriedade, e apenas acessível à elite aristocrática.

Nesta época, as tapeçarias, tecidas em armações de grandes dimensões, pensadas para ocupar a totalidade das paredes e as laterais das portas dos salões dos palácios, apresentavam uma predominância temática religiosa, mitológica e histórica, revestindo os interiores dos palácios das cortes italianas e promovendo uma sensação de conforto e comodidade, tornando mais acolhedores os interiores inóspitos e austeros dos palácios. A imponência da grande escala, a qualidade e o movimento do desenho, a riqueza e o equilíbrio da cor, os materiais refinados e os temas cativantes transformavam as paredes em grandes janelas de paisagens para mundos habitados por elementos reconhecíveis, belos e fascinantes.

A conceção estrutural destes conjuntos de tapeçaria implicava que fosse possível observar e dispor estes objetos parcialmente ou na sua totalidade, de modo mais distante ou mais próximo dos olhos dos observadores ou de outros elementos decorativos. As tapeçarias contêm também a facilidade de transportar e instalar, o que era muito apreciado pelas cortes da época, que mudavam de palácio sazonalmente e apresentavam de modos distintos as suas coleções em proeminentes ocasiões particulares, sendo por isso conhecidas como «os frescos móveis do Norte» (Giulio Romano. Jogos de Crianças, 2022, p. 47).

A sua produção executava-se com minúcia, através da utilização de materiais faustosos importados, e era bastante morosa e dispendiosa. A tecelagem executava-se a partir de desenhos em cartões, mais tarde aumentados, e muitas vezes destruídos após o processo da sua utilização, para evitar reproduções dos motivos.

A armação exposta nesta iniciativa, «Jogos de Crianças», foi encomendada por Frederico II Gonzaga, conservando-se na importante família até ao século XVIII. Os Gonzaga governaram Mântua entre 1328 e 1708 e rivalizavam com outras cortes italianas na aquisição de importantes conjuntos de tapeçaria. Embora tenha sido encomendada por Frederico II, a armação que se expôs no MCG foi concluída para o seu irmão, o cardeal Hércules de Gonzaga, na sequência da morte prematura do primeiro. As armas de ambos são visíveis em algumas tapeçarias, produzidas em Mântua, na manufatura de Nicolas Karcher, mestre tapeceiro de Bruxelas fixado na cidade a convite dos Gonzaga em 1539 com o intuito de criar uma manufatura local de tapeçaria, mudando-se mais tarde para Florença, ao serviço dos Médici.

Uma das particularidades da produção da armação «Jogos de Crianças» prende-se com o facto de ter sido possível ocorrer uma colaboração estreita entre Giulio Romano – trazido para Mântua por Frederico II em 1524 para ocupar a posição de artista da corte – e Nicolas Karcher.  Ambos instalados numa corte que valorizava profundamente o mecenato e na qual a arte se encontrava no centro do mais alto prestígio palaciano, os dois artistas puderam beneficiar deste contexto de proximidade e diálogo, raro na época, uma vez que, na maioria das vezes, se encomendavam tapeçarias feitas a partir de cartões de artistas italianos às manufaturas de prestígio em Bruxelas, cidade na qual, no séc. XVI, cerca de um terço da população se dedicava ao trabalho em manufaturas de tapeçaria.

A fonte iconográfica da armação «Jogos de Crianças» parte de um capítulo do conhecido texto helenístico «Imagens», de Filóstrato, o Velho, dedicado aos Erotes (puttini), filhos de ninfas, pequenas crianças dotadas de asas, nestes quadros dedicadas a diversas atividades num verdejante e faustoso jardim: colhem frutas, dançam ao som de cítaras, flautas e tambores, brincam, dormem, caçam, pescam e convivem com animais, como cegonhas, pássaros, cães, gatos, patos e uma tartaruga. O ambiente que os acolhe é composto por elementos naturais dispostos em diferentes planos, enriquecidos pelos jogos de cor outonais e pela luminosidade do fio de ouro e de prata. Belas árvores e as suas esplendorosas ramagens, frutos como aboboras, romãs, castanhas e uvas, riachos e ribeiros, todos criados com uma precisão gráfica e uma qualidade de composição de enorme capacidade: «Terá sido certamente um humanista erudito da corte de Mântua a sugerir a Frederico II esta fonte de inspiração para as tapeçarias, a qual permitiria a Giulio Romano rivalizar com as imagens do classicismo e ao duque Frederico II evidenciar, naquela cena profana, um subtil significado simbólico. (…) dava-se forma à nova idade de ouro que Mântua vivia sob a égide da família Gonzaga» (Ibid., p. 57). Os sete elementos dividem-se do seguinte modo: «A Dança» (fragmento emprestado pelo Museu Poldi Pezzoli), «O Cão», «A Barca da Fortuna», «O Gato», «O Jogo das Bolas», «A Dança» (o mesmo título atribuído do fragmento emprestado para a iniciativa) e «A Pesca». Será curioso ainda mencionar dois aspetos relativos à temática das tapeçarias: o tema que sustenta o fragmento denominado «A Barca da Fortuna» não faz parte da obra de Filóstrato, pelo que se confirma a ideia, através desta adição, do reflexo que a família Gonzaga procurava transmitir com as suas coleções: a  prosperidade e o poder do Estado de Mântua; o segundo aspeto prende-se com a presença de um pajem negro entre os puttini que brincam, o que «constitui um dos primeiros testemunhos da presença de pajens negros nas cortes italianas» (Ibid.).

Como já foi mencionado, Calouste Sarkis Gulbenkian adquire o conjunto de seis tapeçarias da armação «Jogos de Crianças» em 1920, escolhendo dispô-las, de modo bastante informado e cuidado, na sala de jantar da sua casa em Paris na Avenue d’Iéna (adquirida em 1922) num lugar de honra que elucida a importância destas obras. O decorador Adrien Karbowsky e o arquiteto Emmanuel Pontremoli, responsáveis pelas partes nobres da casa, foram ambos enviados por Gulbenkian em viagem até Mântua e Ferrara de modo a conhecerem bem o ambiente em que as tapeçarias foram criadas e instaladas.

A exposição foi acompanhada de uma publicação com duas edições, em PT e em EN, que contou com notas de apresentação de Guilherme d’Oliveira Martins e de António Filipe Pimentel, uma introdução da comissária da exposição e conservadora do MCG, Clara Serra, e o já citado texto de Lavinia Galli, conservadora do Museu Poldi Pezzoli.

A exposição foi bastante difundida nos media, não havendo, contudo, nenhuma inscrição crítica que mereça uma referência específica. 

No seguimento deste programa, o MCG apresentou, até à data de hoje e na ordem cronológica que se segue, mais dois momentos da iniciativa «Obra Visitante: O Vaso Canópico de Iunefer. Em Busca da Eternidade» e «Obra Visitante: Jean Dunand, O Biombo “Las Cagnas”».

Vera Barreto, 2023


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

A Barca de Vénus

Nikolas Karcher

A Barca de Vénus, c. 1540 / Inv. 29A

Fragmento (o cão)

Nikolas Karcher

Fragmento (o cão), c. 1540 / Inv. 29F

A Pesca

Nikolas Karcher

A Pesca, c.1540 / Inv. 29D

A Roda

Nikolas Karcher

A Roda, c. 1540 / Inv. 29C

Fragmento (o gato)

Nikolas Karcher

Fragmento (o gato), c. 1540 / Inv. 29E

O jogo das bolas

Nikolas Karcher

O jogo das bolas, Inv. 29B


Eventos Paralelos

Conferência / Palestra

Tecendo Desenhos no Renascimento. Giulio Romano e a Tapeçaria

17 nov 2022
Fundação Calouste Gulbenkian / Edifício Sede – Zona de Congressos
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

À Conversa com a Curadora. Clara Serra

11 nov 2022
Fundação Calouste Gulbenkian / Museu Calouste Gulbenkian – Galerias da Exposição Permanente
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias


Multimédia


Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa

Conjunto de documentos relativos à exposição. Contém materiais gráficos, entre outros.

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 401452

Coleção fotográfica, cor: aspetos (MCG, Lisboa)


Exposições Relacionadas

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