Jorge Varanda. Pequeno-almoço sobre Cartolina

Primeira exposição antológica da obra do artista Jorge Varanda (1953-2008). Apresentou uma seleção extensiva que percorreu cerca de trinta anos de trabalho, revelando um campo de experimentação que vai da banda desenhada ao livro de artista, da pintura em suportes tridimensionais à animação digital – área da qual foi precursor em Portugal.
First retrospective exhibition of the work of Jorge Varanda (1953-2008). The show featured an extensive selection representing around 20 years of work, revealing a field of experimentation from comic art to the artist’s book, from three-dimensional paintings to digital animation, an area in which the artist was a pioneer in Portugal.

Jorge Varanda (1953-2008) ocupa um lugar tão próprio quanto subterrâneo no panorama da arte portuguesa contemporânea. Apesar do seu entrosamento no meio artístico lisboeta dos anos 80 e 90 do século XX, o seu trabalho permaneceria alheado das coleções institucionais e das programações museológicas, mantendo-se pouco referido na historiografia da arte portuguesa e bastante desconhecido do público.

Assumindo uma missão de mapeamento e divulgação da obra do artista, o Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) organizou uma exposição antológica do seu trabalho em 2012. Foi inaugurada a 17 de maio de 2012, ocupando a Sala de Exposições Temporárias e a Sala Polivalente do CAM, onde ficaria exposta até 2 de setembro desse ano.

A curadoria coube a Lígia Afonso, historiadora que vinha desenvolvendo um levantamento extensivo do legado de Jorge Varanda. A sua investigação merecera, em 2009, o apoio do Serviço de Belas-Artes da FCG (Arquivos Gulbenkian, SBA 24242). Lígia Afonso era agora convidada a comissariar esta primeira individual póstuma e a primeira de caráter retrospetivo.

O título «Pequeno-almoço sobre Cartolina» é extraído do que a curadora classifica como uma «não-obra», de 1993. Trata-se de uma folha sobre a qual o artista terá tomado refeições, e em que desenhou esquematicamente um comando remoto, duas fatias de pão de forma, um «LOCAL P/ BANDEJA», dado por uma circunferência – elementos esclarecidos mediante setas e nomes. A informação gráfica inclui os borrões, nódoa e carimbos fortuitos que aquele suporte testemunhou, marcas de um quotidiano de que se tornou vestígio. No meio desses acidentes, sobressai uma frase escrita a marcador: «AMANHÃ JÁ TOMAS O PEQUENO ALMOÇO NUMA TOALHA ESTAMPADA». Intitulado, assinado e datado caligraficamente por Varanda, este fragmento de vivência era exposto à entrada da Sala de Exposições Temporárias, dando o mote para um universo pictural marcado por uma figuração existencialista do quotidiano, em que o íntimo e o social se ressoam reciprocamente.

Recorrendo maioritariamente ao espólio do autor que ficara à guarda da família, a exposição reuniu cerca de centena e meia de peças, produzidas entre 1977 e 2007 (Jorge Varanda. Pequeno-almoço sobre Cartolina, 2012). Transitou por trinta anos de um trabalho que se manteve próximo das linguagens da ilustração e da banda desenhada, mas sempre investindo em migrações para formatos híbridos, que abrem e problematizam as aptidões narrativas da figuração. Isso fica desde logo patente na peça mais antiga exposta – um pequeno harmónio, com imagens de ambos os lados, e com arrumação própria dentro do que parece ser uma caixa de fósforos (Ibid.). Como muitas peças do autor, é concebido para ser manuseado, e a manipulação pode operar o exercício desbloqueador da interpretação. Apela assim a uma usura das imagens, a uma mundanização do objeto artístico que valorize o seu lado mais «terreno».

A interatividade, enquanto engrenagem da perceção e da construção narrativa, está prevista em diversos e distintos momentos da obra de Varanda. Acontece também nos mutáveis dos anos 80, caixas em que são inseridas lâminas pintadas e recortadas, num jogo de sobreposições que vai gerando diferentes combinatórias. Duas dessas peças foram apresentadas nesta ocasião e em 2012, juntamente com um painel de fotografias mostrando as múltiplas variações de uma delas, o Mutável n.º 4. As pinturas tridimensionais instaladas na Sala Polivalente também tinham na interação um fator central. Eram mostrados dois dos maiores articulados produzidos pelo artista, espécie de biombos de silhuetas recortadas, com dobradiças que permitem jogos de planos e aberturas, e em que se vão desdobrando personagens, ambientes, a casa, a rua. Eram expostos na companhia de duas «caixas» da série Sem Lugar Nem Data, dos anos 1990, habitadas por pintura no interior e no exterior, e que requerem igualmente um espectador que espreite e se mova em torno, que percorra com o olhar as dinâmicas de dentro e fora, de frentes e versos, de distorções perspéticas e paralaxes.

Como refere a curadora, há na generalidade da obra de Varanda uma geral «prossecução do lúdico, do precário e do inacabado» (Jorge Varanda… [Caderno de exposição], 2012, p. 2), muitas obras recorrendo a matérias apropriadas como suporte (tábuas reaproveitadas, cartões e outros materiais «pobres») e o próprio expressionismo da figuração que os anima. Reivindicam diluições entre o culturalmente «alto» e o culturalmente «baixo», preconceitos evidentemente questionados pela obra deste autor – desde as características objetuais das peças às próprias temáticas, que passam pela cidade e os ambientes suburbanos, pela boémia e por uma cultura underground, por vezes pontuada por referências a realidades sociais mais marginalizadas.

É interessante como várias das peças expostas conjugam essa exacerbação do «cru», do «em bruto», com o «refinamento» dos efeitos óticos e das tensões entre bidimensionalidade e tridimensionalidade que Varanda explora. Atenda-se, por exemplo, ao trabalho perspético de peças como Casa Inversa (1983) e Sofá Inverso [maqueta] (anos 80), ou às personagens de Vestidos de Parede (1984), cujo tronco é dado pelo vazio recortado no suporte (Jorge Varanda..., 2012). De certo modo, estas particularidades apontam para um virtuosismo à primeira vista insuspeito, e até para uma atenção idiossincrática ao trompe l'œil, que se torna tão mais impactante quanto surgida de uma imagética por vezes tão atenta ao grotesco e ao caricatural. Essa atenção ao preciosismo – quase insólita numa obra que, de certo modo, expressa algo de uma cultura punk que lhe foi contemporânea – era já adivinhado na representação pictórica dos reflexos da mesa de vidro de Café (1978), uma pintura que vive da representação de janelas, vitrinas, transparências, espelhos. Provavelmente, parte desses fascínios mais tecnicistas estiveram entre os fatores que conduziram Varanda até à animação 3D, área muito trabalhada no final do seu percurso.

O catálogo de exposição, com design de Jorge Silva (Silvadesigners), apresenta um formato editorial bastante específico, sendo constituído por doze fascículos organizados numa caixa de cartão. Na sua maior parte, esses cadernos apresentam exclusivamente reproduções fotográficas de obras expostas, valorizando, «em silêncio», a obra de Varanda. Os elementos textuais são concentrados em dois desses fascículos, e são de enorme relevância, tendo em conta a escassa monografia publicada sobre o autor. Contemplam ensaios sobre a obra do artista; textos inéditos de sua autoria; notas biográficas, e ainda uma seleção de fortuna crítica que confirma algo frisado no texto curatorial de Lígia Afonso: que Varanda não deixou de merecer uma «excecional cobertura das suas exposições [da década de 1980 e 90], facto surpreendente se tivermos em conta a atual invisibilidade da sua obra». Um dos fascículos é um fac-símile de As Quatro Gémeas – fanzine produzido por Varanda em 1979, a partir de um texto dramático de Copi [Raúl Damonte Botana (1939-1987)]. No caderno de textos, Pedro Moura, estudioso da ilustração e da banda desenhada, publica um ensaio a partir dessa obra. Moura publicaria também um post no blogue Ler BD, adiantando mais alguns tópicos sobre a importância da ilustração e da BD no percurso de Varanda.

Os textos inéditos do artista, publicados nesta ocasião, são excertos de três relatórios elaborados no âmbito de uma subvenção concedida pelo Serviço de Belas-Artes, entre 1995 e 1998 (Arquivos Gulbenkian, SBA 07514), para um projeto de animação digital. Esclarecem algumas especificidades técnicas e teóricas desse trabalho, que recuperou um título várias vezes usado pelo artista nos anos 90: Sem Lugar Nem Data. Informam também quanto à utilização de vários clips animados no grande ecrã da Praça Sony, durante a Expo'98. Apareciam nos intervalos entre os espetáculos programados para aquele recinto. Em 2001, Varanda conclui um vídeo no âmbito deste projeto. Nele sobressai algo que ocupou por diversas vezes o autor: a representação de ambientes expositivos. Neste caso, recria-se uma exposição do próprio no Museu de História Natural, em Lisboa. Algumas das personagens que convivem nesse cenário são estranhos e fantásticos avatares que encarnam, em versão computorizada, aspetos de algumas obras físicas do artista. Esse filme circulou por festivais internacionais, e seria apresentado nesta retrospetiva do CAM, juntamente com outras peças de arte digital (Disponível em: https://www.realficcao.com/semlugarnemdata.html). Uma cópia em DVD seria doada à Fundação na sequência desta exposição (Inv. IM57).

Foi justamente a animação que ligou Varanda a algumas iniciativas da Fundação Calouste Gulbenkian na década de 1980. O artista integrou o Curso de Introdução ao Cinema de Animação, organizado pela FCG e pelo Royal College of Art, em Londres, em 1985/1986. Pouco mais tarde, em 1989, participa no Curso de Desenho e Animação por Computador apoiado pelo ACARTE (Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte), da FCG. Nessa área, a retrospetiva do CAM incluiu ainda Transportes, de 1985-1986, e Transportes 2, já de 2006, em animação digital 3D, bem como Cinema, de 2007. O catálogo refere ainda uma peça fílmica mais antiga, Ludos, de 1983, que cruza a captação em Super 8 com intervenções gráficas na película.

Além da cópia DVD já referida, foram doadas 16 peças do autor à FCG no âmbito desta retrospetiva. Juntaram-se-lhe quatro peças adquiridas pela Fundação (três pinturas sobre madeira e uma das caixas tridimensionais apresentadas na Sala Polivalente), perfazendo a totalidade de 21 peças do artista atualmente incorporadas na coleção do CAM – todas elas expostas nesta ocasião de 2012.

No texto de apresentação institucional que publica no catálogo, a administradora Teresa Gouveia sublinha o restauro empreendido pela FCG de várias das peças do acervo exposto. Esse trabalho de conservação ficou a cargo de Elizabeth Martins, existindo um pequeno relatório especificando algumas das intervenções (Relatório, 2012, Arquivos Gulbenkian, ID: 267786).

Na imprensa, o artigo de Celso Martins para o jornal Expresso termina observando que «a obra de Varanda clama por uma redescoberta» (Expresso. Atual, 27 jul. 2012, p. 28). «Pequeno-almoço sobre Cartolina» representou um importante passo nesse sentido, objetivo para o qual também contribuíram as atividades paralelas organizadas pelo Setor de Educação do CAM. Às várias visitas orientadas a cargo da curadora, juntou-se uma oficina de animação em stop motion para crianças, orientada por Carla Rebelo e Rita Cortez Pinto (Agenda Mensal, jul.-ago. 2012, p. 27).

Daniel Peres, 2019


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

A Queda das Jóias da Luísa Todi

Jorge Varanda (1953-2008)

A Queda das Jóias da Luísa Todi, 1987 / Inv. 12P1654

S.L.N.D. (Sem Lugar Nem Data)

Jorge Varanda (1953-2008)

S.L.N.D. (Sem Lugar Nem Data), 2001 / Inv. IM57

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1660

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1661

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1650

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1655

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1656

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1657

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1662

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1647

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1648

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1659

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, Inv. 12P1658

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1651

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1652

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1653

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1646

Sem Lugar Nem Data

Jorge Varanda (1953-2008)

Sem Lugar Nem Data, 1993-94 / Inv. 12E1663

Sem Lugar Nem Data

Jorge Varanda (1953-2008)

Sem Lugar Nem Data, 1993-94 / Inv. 12E1664

Sem Lugar Nem Data

Jorge Varanda (1953-2008)

Sem Lugar Nem Data, 1993-94 / Inv. 12E1665

sem título

Jorge Varanda (1953-2008)

sem título, 1987 / Inv. 12P1649

A Queda das Jóias da Luísa Todi

Jorge Varanda (1953-2008)

A Queda das Jóias da Luísa Todi, 1987 / Inv. 12P1654

S.L.N.D. (Sem Lugar Nem Data)

Jorge Varanda (1953-2008)

S.L.N.D. (Sem Lugar Nem Data), 2001 / Inv. IM57

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1660

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1661

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1650

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1655

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1656

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1657

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1662

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1647

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1648

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1659

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, Inv. 12P1658

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1651

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1652

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1653

S/Título

Jorge Varanda (1953-2008)

S/Título, 1990 / Inv. 12P1646

Sem Lugar Nem Data

Jorge Varanda (1953-2008)

Sem Lugar Nem Data, 1993-94 / Inv. 12E1663

Sem Lugar Nem Data

Jorge Varanda (1953-2008)

Sem Lugar Nem Data, 1993-94 / Inv. 12E1664

Sem Lugar Nem Data

Jorge Varanda (1953-2008)

Sem Lugar Nem Data, 1993-94 / Inv. 12E1665

sem título

Jorge Varanda (1953-2008)

sem título, 1987 / Inv. 12P1649


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

Encontros ao Fim da Tarde

mai 2012
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

Domingos com Arte

mai 2012
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

Uma Obra de Arte à Hora do Almoço

20 jul 2012
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Artur Santos Silva (à esq.), Isabel Carlos (atrás) e Teresa Gouveia (ao centro)
Isabel Carlos (à esq.), Teresa Gouveia (atrás), Artur Santos Silva (ao centro) e Lígia Afonso (à dir.)
Manuel da Costa Cabral e Raquel Henriques da Silva
Fernando Varanda

Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), Lisboa / CAM 00664

Pasta com documentação referente à produção da exposição e respetivo catálogo. Contém correspondência interna e externa; informações sobre aquisição e doação de obras do artista; formulários de empréstimo e transporte de obras; orçamentos (para restauro de algumas das obras expostas); provas de revisão e cópias dos textos de catálogo. 2011 – 2012

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 6967

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG-CAM, Lisboa) 2012

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 6968

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG-CAM, Lisboa) 2012


Exposições Relacionadas

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