«Deslocações / From Here to There» foi uma exposição coletiva centrada na fotografia enquanto linguagem da arte contemporânea. O título alude justamente ao modo como vários artistas têm «deslocado» o medium fotográfico para outros universos criativos. Aos dez autores representados não podemos chamar estritamente fotógrafos, nem designar exclusivamente como fotografia o trabalho que desenvolvem. No entanto, as estratégias plásticas e conceptuais com que operam essa tecnologia arrastam consigo questionamentos sobre a própria ontologia da imagem fotográfica, a sua importância na cultura visual, o seu problemático enquadramento na tradição das artes visuais.

Surgindo no final dos anos de 1990, esta exposição reunia obras de autores de referência para pensar estas problemáticas, num final de século que pode ser visto como uma primeira fase de amadurecimento da consagração que a fotografia tinha vindo a atingir, enquanto prática artística contemporânea, desde as décadas de 1960 e 1970. Entre os artistas expositores, Helena Almeida (1934-2018) e Michelangelo Pistoletto (1933) eram dois dos que tinham acompanhado esse período seminal. Por seu turno, Jeff Wall (1946) ou Cindy Sherman (1954) surgiam já, desde o início dos anos 80, como dois dos nomes mais sonantes entre os artistas a usar a fotografia na cena artística internacional. Ombreavam aqui com obras de autores menos referidos e que a exposição vinha revelar como profundamente desafiantes.

Em muitos desses trabalhos sobressai o uso da fotografia em estratégias de instalação – algo de que Helena Almeida e Pistoletto foram introdutores. Esses jogos podem basear-se na interlocução entre as imagens, casos de Geneviève Cadieux (1955) ou Marin Kasimir (1957) – autor de uma peça cujo título coincide com o nome original desta exposição: From Here to There. Noutros casos, as instalações expandiam-se à integração espacial da fotografia em situações partilhadas com outros objetos – destaque para as gaiolas minimais com pássaros vivos de Jean-Marc Bustamante (1952), ou os conjuntos de Mark Luyten (1955) ou Rodney Graham (1949), este último com uma câmara obscura a surgir da maquete de uma antiga carroça dos correios dos Estados Unidos da América. Estes dois autores utilizam também o vídeo, num diálogo com a imagem em movimento que foi frequentemente realçada na mostra, nomeadamente na relação entre a fotografia e o cinema, que ocupa um lugar destacado no discurso curatorial.

Projeto de envergadura internacional, «Deslocações / From Here to There» partiu da iniciativa do curador Michael Tarantino. Após a individual de Julião Sarmento, em 1993, esta seria a segunda mostra a ser comissariada pelo norte-americano para a FCG. O Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP) recebeu a proposta, responsabilizando-se pela articulação logística do projeto em coprodução com o então recém-criado Centro Português de Fotografia (CPF), do Ministério da Cultura de Portugal. A exposição inaugurou primeiro em Lisboa, na Sala A e na Galeria do Centro de Arte Moderna (piso 1), a 14 de outubro de 1997. A folha de sala que auxiliou o público durante a apresentação na Gulbenkian divulga um calendário de visitas guiadas à exposição, orientadas por Sandra Vieira. Após o fecho em Lisboa, que se deu a 4 de janeiro de 1998, a mostra seguiu para o Porto, onde estaria patente na Cadeia da Relação entre março e maio desse ano.

Os custos de produção de todo o evento foram naturalmente avultados, em consonância com as exigentes especificidades técnicas da montagem de muitos dos trabalhos apresentados. Exemplo disso mesmo é o plano de montagem de uma das duas caixas de luz de Jeff Wall, acompanhada por um dos seus assistentes que viajou do Canadá para esse efeito, salvaguardando o bom cumprimento de um extenso manual metodológico, atualmente conservado nos Arquivos Gulbenkian (Arquivos Gulbenkian, CAM 00393).

Este frutuoso esforço orçamental contemplou ainda o financiamento do trabalho apresentado por Helena Almeida, cujas ampliações foram custeadas pela FCG para serem expostas nesta ocasião (Arquivos Gulbenkian, CAM 00391). Trata-se de uma das icónicas séries fotográficas captadas por Artur Rosa no ateliê da autora, numa altura em que essa começava a ser a matriz dominante da obra desta artista portuguesa. Até ao final da vida, Helena Almeida abordou o seu corpo em contacto direto com este espaço físico de criação, prosseguindo insólitos e tocantes comportamentos performativos – sempre a preto-e-branco, e sempre vestida de preto. Neste caso, trata-se de uma sequência S/título, composta por 18 fotos, todas na mesma cena e de enquadramento extremamente vertical. O chão ocupa mais de metade do plano destas imagens, que vai subindo até uma parede ao fundo, contra a qual a artista, de costas voltadas para o espectador, corre e esbarra. O catálogo de exposição refere este trabalho a partir do que parece ser uma tiragem de teste, com pequenas ampliações de 2,46 × 6,15 cm, (Deslocações, p. 11 e p. 44). No entanto, os registos fotográficos das salas de exposição, conservados nos Arquivos Gulbenkian, confirmam que as grandes ampliações, medindo cada uma delas 245 × 63 cm, foram de facto estreadas nesta mostra. Emolduradas, e justapostas linearmente, as 18 fotos perfazem cerca de 12 metros de largura, por 245 centímetros de altura. A obra pertence atualmente à Coleção Berardo.

O processo desta exposição itinerante regista algumas ocorrências no que concerne a conservação e restauro. O próprio retorno das obras aos emprestadores fica marcado por alguns danos reportados pelos destinatários. O CPF e o CAMJAP acionaram os meios ao seu dispor para colmatar esses incidentes (Arquivos Gulbenkian, CAM 00391 e CAM 00392).

No decurso das montagens da edição de Lisboa, o CAMJAP recebe uma proposta da parte do Núcleo de Estudos Cinematográficos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa para a captação de imagens em vídeo e recolha de depoimentos de agentes envolvidos. Visava integrar o episódio-piloto de um programa televisivo, de índole cultural, o magazine Ilhas. Com coordenação de João Mário Grilo, docente na referida faculdade, o projeto contava com o patrocínio da própria FCG, que, naturalmente, autorizou as gravações. No segmento dedicado a «Deslocações / From Here to There», Michael Tarantino aparece tecendo algumas considerações breves. São também incluídos alguns comentários em voz-off dos artistas Jean-Marc Bustamante e Geneviève Cadieux. Esta produção audiovisual seria proposta à RTP (Rádio e Televisão de Portugal), cuja aceitação e eventual transmissão não foi confirmada. Uma cópia em DVD encontra-se atualmente disponível para visionamento na Biblioteca de Arte da FCG (VC296 1-5).

Daniel Peres, 2019