“Pelo caminho um ramo de paisagens para Carlos Nogueira”
Uma das recordações mais gratas da infância de Salette Tavares (1922-1994) era, como escreveu no texto de cariz autobiográfico do catálogo da exposição Brincar – realizada na Galeria Quadrum em 1979 – a dos seus dois jardins: o que tinha na escola, onde lhe “deram um bocado de terra e outro em casa, onde a pedi”, nos quais enterrava “com os dedos as sementes” das plantas que aí semeava.
Para além dessa memória feliz, Salette não deixou nunca de considerar os jardins e os elementos da natureza como componentes decisivos no desenvolvimento criativo das crianças, como afirmou no mesmo texto: “É preciso que não separemos as crianças dos jardins e não as deixemos morrer atrofiadas pelas lojas de brinquedos que, como todas as lojas da civilização de agora, com as suas mon(s)tras comem as infâncias das crianças, dos papás e dos avós”.
Quanto aos seus dois jardins da infância, eles ficavam na cidade à beira do oceano Índico, que hoje se chama Maputo, onde Salette Tavares nasceu, em 1922, e onde viveu com a família até aos dez anos.
Esta dimensão lúdica associada à infância esteve presente continuamente em todas as obras que Salette Tavares realizou e foi por ela sempre assumida sem complexos. “Brincar é a criatividade da infância que levamos pela vida fora, se o soubermos”, escreveu em 1975. O gosto de brincar e, sobretudo, de brincar com as palavras começou precocemente, nas suas brincadeiras de menina: “Com poucos brinquedos, tudo era brinquedo, folhas, frutos, gafanhotos, terra, lata e até nada. E este nada é importantíssimo. Bastava a palavra que se coisificava. Era tão fácil jogar com ela como jogar à bola”, revelou no já citado texto de 1979. A palavra havia de ser “a coisa mais linda” da sua vida e o uso que dela fez tornou Salette Tavares uma das figuras mais proeminentes do designado Movimento da Poesia Experimental, nova forma de expressão poética de carácter vanguardista que se desenvolveu e afirmou além-fronteiras e entre nós, entre as décadas de 1950 e 1970.
Em Portugal, no contexto de repressão em que se vivia, este movimento, para além do carácter de contestação ao meio literário, teve igualmente um lado de contestação política ao regime que foi, aliás, partilhado no âmbito das artes plásticas e das artes performativas. Para além de Salette Tavares, os protagonistas do Movimento da Poesia Experimental foram Ernesto de Melo e Castro, António Aragão e Ana Hatherly que, durante aqueles anos, produziram textos visuais, organizaram e participaram nos primeiros happenings.
Até 1994, ano em que faleceu, a sua sólida formação filosófica e estética levou ainda Salette Tavares a desenvolver uma prolífica atividade de crítica de artes plásticas em diversas publicações, tendo sido presidente da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte (1974-1977). Da sua atividade pedagógica, salienta-se a sua passagem como professora de Estética no então recém-criado Ar.Co (Centro de Arte e Comunicação Visual), onde realizou o “happening“ Sou Toura Petra. Entre a sua obra poética publicada contam-se Espelho cego (1957), Concerto em Mi Maior para clarinete (1961), Quadrada (1967) 14 563 Letras de Pedro Sete (1967) e Lex icon (1971), este com o prefácio Gillo Dorlfes na edição italiana.
Pelo caminho um ramo de paisagens para Carlos Nogueira é um texto manuscrito em prosa poética, escrito em esferográfica de tinta preta, com uma caligrafia clara e bem desenhada, numa frágil e transparente folha de papel vegetal, assinado e com a data de novembro de 1983. O texto tem uma acentuada carga biográfica, relatando um dramático acontecimento da vida familiar de Salette Tavares; talvez por isso, apresenta algumas rasuras e palavras emendadas, como se dum rascunho se tratasse. Apesar da dramaticidade do acontecimento relatado – o grave acidente de automóvel de seu filho – existe no texto uma espécie de ironia e um certo nonsense. Como em outras das suas obras poéticas, encontra-se também aqui a preocupação com a espacialidade na organização do corpo do texto, através da utilização gráfica dos espaços em branco na página, criando assim não só um ritmo visual, como um ritmo de leitura.
Dedicada ao artista plástico Carlos Nogueira (n. 1947), esta obra foi “a paisagem de resposta” de Salette Tavares a um dos postais que o artista recriou, modificando-os criativamente, intitulando-os de “paisagens de mandar”, e que enviou a alguns dos seus amigos. A “paisagem de mandar” que Carlos Nogueira enviou a Salette era um postal de Fátima onde, no meio de um conjunto de chapéus-de-chuva escuros, sobressaía ao olhar um guarda-chuva amarelo. Na sua “paisagem de resposta”, Salette Tavares fala da sua impossibilidade de apanhar sol e dos seus guarda-sóis: aquele “com treze anos de uso estava um trapo salvo por umas varetas remendadas”, o “guarda-sol amarelo brilhante — meu guarda-sol de enigma, onde o sol se vê em espelho”, oferecido pela tradutora italiana de Lex icon, um outro “chinês, que serve muito bem na minha casa de Lisboa”.
Esta obra, que foi doada por Carlos Nogueira à Biblioteca de Arte em 2014, integrou a exposição sobre Salette Tavares que o Centro de Arte Moderna apresentou entre 7 de outubro de 2014 e 25 de janeiro de 2015.
Obras da Biblioteca
Uma seleção de livros e revistas, fotografias, catálogos de exposições e outros documentos cujos temas se relacionam com a história da arte, as artes visuais modernas e contemporâneas, a arquitetura, a fotografia e o design portugueses.