Calouste Gulbenkian, os Arménios e o estatuto político de Jerusalém

Em finais dos anos 40, Calouste Gulbenkian, então residente em Portugal, dedica especial atenção às profundas tensões geradas no Médio Oriente, designadamente as que sucedem à fundação do novo Estado de Israel, à discussão do Estatuto político de Jerusalém e às consequências para a comunidade arménia na Cidade Santa.
01 ago 2024 10 min
Dos Arquivos

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, e em resposta a um pedido do Governo do Reino Unido, à época responsável pelo Mandato da Palestina, é instituído, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em maio de 1947, um comité especial para a Palestina (United Nations Special Committee on Palestine – UNSCOP).

Esta entidade, cuja missão era elaborar uma proposta com possíveis soluções para a região, apresenta em setembro desse mesmo ano um plano que prevê o fim do Mandato Britânico da Palestina e propõe a divisão do território em dois Estados – um judeu e outro árabe –, ficando a cidade de Jerusalém sob controlo internacional. Este Plano será votado como Resolução n.º 181 na sessão de 29 de novembro de 1947 da Assembleia Geral das Nações Unidas.

A aprovação desta resolução e a proclamação do Estado de Israel, a 14 de maio de 1948, precipitam o eclodir da guerra israelo-árabe de 1948. Este conflito, que alastra por todo o antigo Mandato da Palestina, irá afetar o Patriarcado e a comunidade arménia de Jerusalém.

A partir de Lisboa, cidade onde então residia, Calouste Sarkis Gulbenkian acompanha com particular preocupação o evoluir dos acontecimentos. Mantivera, ao longo da sua vida, uma ligação à Cidade Santa e apoiara regularmente, e de forma generosa, o Patriarcado e a comunidade arménia daquela cidade.

É neste contexto que, em outubro de 1948, o Patriarca Arménio de Jerusalém, Guregh Israelian (1894-1949), envia uma carta a Gulbenkian descrevendo em pormenor os estragos causados pela guerra ao bairro arménio, ao Convento de São Tiago e à Biblioteca Gulbenkian:

“A localização do nosso Patriarcado, do nosso Mosteiro e do nosso Bairro tornou os nossos edifícios vulneráveis aos bombardeamentos contínuos da cidade, tão indiscriminadamente, em grande e pequena escala, um sacrilégio inacreditável, mas que, infelizmente, foi cometido.”

Num relato dramático narra a difícil situação em que se encontra o Patriarcado e a comunidade arménia:

“(…) devido à situação, os nossos rendimentos, que provinham principalmente das rendas das nossas casas e lojas na Cidade Velha e na Cidade Nova, e em Jaffa e Ramleh, secaram completamente antes de maio e, desde então, quase não temos dinheiro para pagar as nossas despesas correntes e as muitas novas despesas que a situação criou. Reduzimos as despesas do mosteiro e da comunidade religiosa de São Tiago. Reduzimos para metade os salários de todos, incluindo professores e empregados, e suspendemos o trabalho construtivo, exceto o essencial.

(…) Tivemos de pagar todos os impostos governamentais e municipais relativos aos nossos edifícios dentro dos muros da Cidade Velha. (…) tivemos de participar em projetos públicos como o abastecimento de água a Jerusalém a partir das antigas fontes, uma vez que a água de Jerusalém proveniente de Jaffa está cortada desde maio (…)

Tivemos de murar uma parte dos nossos edifícios por razões de segurança, tivemos de reparar e substituir muitas janelas e portas que têm sido repetidamente arrancadas dos seus lugares ou esmagadas pelas bombas e pelos choques das minas terrestres. Toda a ajuda que recebemos foi gasta na alimentação aos refugiados (…)”

Apreensivo, Calouste Gulbenkian irá procurar ajudar e influenciar a situação dos arménios na Terra Santa, incumbindo dessa tarefa Avetoon Pesak Hacobian (1875-1972), um arménio em quem confia plenamente e à época o responsável pelos seus escritórios em Londres. Mostra-se, no entanto, pessimista e descrente numa solução para o conflito. Em carta enviada a Alexis Léger (1887-1975) em abril de 1949, escreve:

“O Médio Oriente, pelo qual, como sabe, tenho um profundo interesse, está a braços com uma anarquia absoluta pela qual só as grandes potências são responsáveis. A sua ignorância relativa à psicologia local, a sua incompetência, a sua intriga e o seu egoísmo estão a conduzir estas regiões ao caos. Perdoe-me a franqueza do meu discurso. Acrescento que, na minha opinião, o Tratado entre o Egipto e Israel abre a porta a futuras perturbações. Como vê, não estou nada otimista.”

Em junho do mesmo ano, noutra carta para Léger, o tom mantém-se:

“Temo-nos ocupado muito de Berlim e não o suficiente do Médio Oriente, onde se acumulam problemas sérios e muitas intrigas (…) Aqueles que foram encarregues de acompanhar a situação são médicos medíocres, cheios de si e, na sua maioria, incrivelmente ignorantes. O Presidente dos Estados Unidos corteja Israel, convidando o Presidente do Estado recém-nascido a ficar na Casa Branca, e a Inglaterra envia discretamente armas aos árabes. É tudo tão incoerente.  Que triste figura a dos Estados mandatários, dominados na sua maioria pelo seu próprio egoísmo e completamente indiferentes ao destino dos países que deveriam proteger.”

A ideia de que os países ocidentais não compreendem os povos do Médio Oriente, tendo para com eles atitudes arrogantes e prosseguindo políticas desastrosas centradas apenas nos seus interesses, é uma constante na correspondência de Calouste Gulbenkian com diplomatas, como o iraniano Hussein Ala (1881-1964), o embaixador americano em Lisboa entre 1945 e 1947, Herman B. Baruch (1872-1953), ou ainda com responsáveis pelas grandes petrolíferas mundiais, como o americano Brewster Jennings (1898-1968).

A guerra israelo-árabe de 1948 termina com a assinatura, durante o ano de 1949, de diversos acordos bilaterais entre Israel e Egito, Líbano, Transjordânia e Síria, conseguindo Israel ficar com uma área maior do antigo Mandato da Palestina do que aquela prevista pelo Plano de Partilha das Nações Unidas.

A cidade de Jerusalém, que havia sido parcialmente capturada pelas tropas israelitas no decurso da guerra, passa a ser controlada por Israel (parte ocidental) e pela Transjordânia (parte oriental, onde se situa a Cidade Velha e o bairro arménio). Não obstante, o Conselho de Tutela das Nações Unidas prossegue os esforços com vista à implementação da Resolução n.º 181 das Nações Unidas, que previa a divisão da região em 2 estados e a internacionalização da cidade de Jerusalém.

Em janeiro de 1950 o bispo Tiran Nersoyan (1904-1989), responsável pela Igreja Arménia da América do Norte, é encarregue pelo Locum Tenens do Patriarca de Jerusalém de apresentar ao Conselho de Tutela a posição do Patriarcado sobre o futuro estatuto da cidade. Escreve a Calouste Gulbenkian e anexa a cópia do memorando que pretende enviar ao Conselho, cujas reuniões para preparar o estatuto de Jerusalém serão realizadas brevemente.

No documento é defendido o apoio da Igreja Arménia, através do Patriarcado de Jerusalém, à resolução das Nações Unidas a favor da internacionalização da cidade, justificando o bispo que, dado o caráter internacional dos Lugares Sagrados para as três grandes religiões do mundo, seria vantajoso que a cidade não fosse governada por uma só nação ou um só regime, mas que o acesso livre aos Lugares Santos fosse salvaguardado por uma autoridade internacional.

Na resposta, Calouste reitera as suas convicções sobre a necessidade em não dispersar os esforços nacionais arménios, indispensáveis à sobrevivência espiritual e material do Convento de São Tiago, sede do Patriarcado, mostrando-se muito cauteloso na questão do estatuto político de Jerusalém:

“De um ponto de vista nacional, e também por razões de prudência, teria sido preferível não nos pronunciarmos sobre o estatuto político de Jerusalém. Deveríamos ter-nos limitado a defender a causa das nossas instituições religiosas e das nossas tradições nacionais, sem nos permitir exprimir a opinião de que Jerusalém deveria gozar de um estatuto internacional. Parece-me que uma minoria como a nossa deveria ter o cuidado de não defender uma opinião que a opõe claramente aos seus vizinhos, os israelitas e os muçulmanos. Pode surgir um certo mal-estar, que é melhor evitar. Permitam-me também sublinhar que, pessoalmente, não tenho qualquer confiança na intervenção das Nações Unidas. As Nações Unidas tornaram-se num debating center com pouco poder para além das palavras.”

A posição da Igreja Arménia será apresentada formalmente ao Conselho de Tutela das Nações Unidas, reunido em Genebra, em fevereiro de 1950 pelo bispo Tiran Nersoyan.

O clérigo, que começa por lembrar a ligação de 1.300 anos do povo arménio à Cidade Santa, frisando que Jerusalém representa o centro da vida religiosa arménia, suaviza o discurso no que respeita ao apoio ao estatuto internacional da cidade.

Refere que não pretende expressar opiniões políticas sobre o complexo problema de Jerusalém, mas que toda a sua argumentação parte do pressuposto que Jerusalém será colocada em administração internacional, tal como previsto na Resolução das Nações Unidas.

Acrescenta que a situação atual, em que Jerusalém é governada por judeus e árabes, é injusta para os cristãos, defendendo que a cidade deve ser una e não estar dividida, pois pertence às 3 grandes religiões.

Sugere ainda que o conceito de proteção aos Lugares Santos seja usado num sentido mais lato e inclua edifícios religiosos, estabelecimentos de educação, ou mosteiros.

Calouste Gulbenkian, que acompanha, sempre através de Hacobian, todas estas diligências, faz saber ao Locum Tenens reverendo Yeghisé Vardapet Derderian (1911-1990) que está ciente da difícil situação em que se encontra o Patriarcado, despojado das rendas das propriedades que detém em Jaffa e Jerusalém, e solicita informação detalhada sobre essas propriedades por forma a decidir a melhor maneira de ajudar.

Em janeiro de 1952, mais de um ano após este pedido, Calouste é informado, através de um memorando enviado pelos seus escritórios em Londres, da atual situação das propriedades do Patriarcado em Israel. Fica a saber da existência de conversações com as autoridades israelitas, estando parte das rendas das propriedades do Patriarcado já novamente a ser pagas, verificando-se, porém, alguns constrangimentos às transferências monetárias para a Cidade Velha de Jerusalém, então sob administração da Transjordânia. Os problemas financeiros, no entanto, subsistem, devido a toda a situação criada pelo conflito.

Calouste Gulbenkian manterá, até ao final da sua vida, o apoio financeiro ao Patriarcado Arménio em Jerusalém. Depois dele, a Fundação Calouste Gulbenkian, reconhecendo a importância do Patriarcado para a comunidade arménia, continuará a ajudar o Patriarcado até aos dias de hoje.

Série

Dos Arquivos

Momentos relevantes na história de Calouste Gulbenkian e da Fundação Gulbenkian em Portugal e no resto do mundo.

Explorar a série

Definição de Cookies

Definição de Cookies

Este website usa cookies para melhorar a sua experiência de navegação, a segurança e o desempenho do website. Podendo também utilizar cookies para partilha de informação em redes sociais e para apresentar mensagens e anúncios publicitários, à medida dos seus interesses, tanto na nossa página como noutras.