“A poesia está na rua”

Cartazes de Maria Helena Vieira da Silva

No ano em que se assinalam os 50 anos da Revolução de 25 de Abril de 1974, a Biblioteca de Arte e Arquivos evoca os cartazes “A poesia está na rua”, da pintora Maria Helena Vieira da Silva.
18 abr 2024 14 min
Dos Arquivos

Parte da história da Revolução de 25 de Abril de 1974 e dos conturbados meses que se seguiram na transição para a Democracia foi fixada em cartazes. Numa amálgama de cor e de mensagens políticas e palavras de ordem, os cartazes foram uma das manifestações artísticas mais marcantes desse período. Na sua criação vão envolver-se, entre tantos outros, artistas como Marcelino Vespeira, João Abel Manta, Henrique Ruivo ou Artur Rosa. E Maria Helena Vieira da Silva.

É de Sophia de Mello Breyner Andresen, amiga de Vieira da Silva, que, em inícios de 1975, parte o desafio para a pintora conceber um cartaz que assinalasse o primeiro aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974. A frase de um poema seu dedicado aos militantes do Partido Socialista —A poesia está na rua —, que aparecera inscrita em muitos dos cartazes que desfilaram nas comemorações do 1.º de Maio daquele ano, serviria de mote.

A artista, que estava então radicada em França, com temporadas repartidas entre Paris e Yèvre-le-Châtel, acompanhava atentamente pela imprensa o desenrolar dos acontecimentos em Portugal e, com a celeridade requerida por Sophia, concebe dois cartazes na sua casa-atelier da Rue de l’Abbé Carton.

Na verdade, concebeu inicialmente um único cartaz. Fiel à sua linguagem plástica, tendencialmente abstracionista, a pintora representa num suporte com as dimensões de 104,7 cm x 75 cm, a multidão nas ruas a acorrer ao Largo do Carmo, os militares, os cravos vermelhos, e inscreve, na zona inferior, a frase “A POESIA ESTÁ NA RUA”. Recorre depois a um segundo suporte, com as dimensões de 20 cm x 74,2 cm, para fazer a base da composição, onde inscreve o tema central do cartaz — “25 de ABRIL de 1974”.

Gosta do resultado, mas não se convence. Teme que a sua visão abstracionista dos acontecimentos não seja compreendida. Empreende então a execução de um novo cartaz.

Com um registo mais figurativo, ilustra, num suporte com 104 cm x 79,5 cm, a multidão a desfilar numa rua, com os militares empunhando cravos vermelhos nas mãos e nas armas e, nas janelas, pessoas também com cravos. Num primeiro plano, a porta de um edifício ostenta o número 25, evocando provavelmente a data de 25 de abril, dia da Revolução. No canto superior direito do cartaz, inscreve o tópico “XXV de ABRIL de 1974”, e na zona inferior, a frase “A POESIA ESTÁ NA RUA”.

As duas obras são assinadas pela pintora.

Para a sua execução privilegia a utilização do papel como suporte. Para além de ser leve e prático, de fácil transporte e manuseio, é o predileto de Vieira da Silva no recurso à pintura com tintas à base de água, como a aguarela, o guache ou a têmpera. Para matéria de registo a escolha evidente é o guache por ser, a par da têmpera, a “linguagem plástica que mais se coaduna para fixar as suas ideias e sensações com a rapidez e liberdade que não são compatíveis com a pintura a óleo”, como considerou, mais tarde, o crítico de arte Guy Weelen, colaborador próximo da pintora, a propósito da exposição “Vieira da Silva. Pinturas a Têmpera, 1929-1977”, na Fundação Gulbenkian, de que foi comissário.

As qualidades artísticas dos cartazes são enaltecidas por Sophia, ainda que a sua predileção pelo primeiro seja inequívoca. Todavia a pintora confia-lhe os dois.

Vieira da Silva e Sophia de Melo Breyner decidem conferir um propósito beneficente ao projeto. Os longos anos de guerra colonial (1961-1974) haviam empenhado toda uma geração de jovens portugueses. Para além de milhares de mortos, a mobilização para África resultou em outros tantos inválidos de guerra, que o País procurava agora, com dificuldade, reabilitar e reintegrar.

Ficou então assente que o valor da venda dos cartazes — os originais e as reproduções — se destinaria à ajuda destes homens e a pintora solicita, para essa realização, a ajuda da Fundação Calouste Gulbenkian, instituição que tem, precisamente, a Beneficência como um dos seus fins estatutários.

Terá sido Sophia a portadora dos cartazes para Lisboa, fazendo-os chegar à Fundação.

Em finais de março de 1975, José de Azeredo Perdigão informa o Conselho de Administração de que “a pintora Maria Helena Vieira da Silva enviara à Fundação os originais de dois cartazes de sua autoria com uma legenda da poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, alusivos ao 25 de Abril, indicando que a respectiva reprodução, a efectuar pela Fundação, fosse divulgada por todo o País, devendo os referidos originais, ou o seu valor, destinarem-se a instituições para mutilados de guerra”.

O Conselho de Administração, “admirando a elevada qualidade artística”, autoriza a edição dos cartazes. Contudo, faz depender essa edição de uma prévia consulta à 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, serviço ao qual competia, através da Comissão Dinamizadora Central — a CODICE —, a produção de materiais gráficos de apoio ao Movimento das Forças Armadas, utilizados nas “campanhas de dinamização cultural e cívica” empreendidas junto das populações, sobretudo das mais iletradas, de forma a consolidar a “aliança Povo-MFA” (são exemplos célebres os cartazes concebidos pelos artistas Marcelino Vespeira e João Abel Manta).

Obtida a concordância da 5.ª Divisão, a Fundação adjudica à firma Neogravura a edição de dez mil exemplares de cada um dos cartazes, impressos “a heliocromia sobre papel printomat, de 125 grs. m/2”.

José de Azeredo Perdigão de imediato faz chegar a Paris, a Vieira da Silva, através de José Sommer Ribeiro, diretor do Serviço de Exposições e Museografia, alguns exemplares acompanhando-os de palavras de admiração.

No regresso a Lisboa, Sommer Ribeiro relata ao presidente: “Conforme combinado, entreguei à pintora Vieira da Silva 10 exemplares de cada um dos cartazes A poesia está na rua. Tanto a artista, como seu marido [Arpad Szenes] e Guy Weelen manifestaram o seu agrado pela qualidade com que os mesmos tinham sido executados. Quanto ao destino a dar aos originais, a artista gostaria que os mesmos fossem vendidos e o produto revertesse a favor da Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Os cartazes que não fossem distribuídos gratuitamente, julga que seria de interesse que fossem vendidos pela Fundação ou pela 5.ª Divisão do Estado Maior das Forças Armadas, revertendo também o produto a favor da Associação”.

Reforçando o relato de Sommer Ribeiro, a artista escreve ainda a Azeredo Perdigão: “Ainda bem que gostou tanto dos meus cartazes. O seu telegrama deu-me grande alegria. Todos aqui admiram a magnifica reprodução. Eu sabia que ela seria óptima. Deus queira que a venda dê bastante lucro para ajudar os infelizes. Sigo todos os dias nos jornais as notícias de Portugal”.

A distribuição dos cartazes é assegurada pela CODICE. Não terão tido, contudo, o mesmo destino que muitos outros produzidos no âmbito desse serviço, pois, “pela sua qualidade, não puderam ser afixados na rua, onde necessariamente teriam uma vida efémera”. São distribuídos “por secções de voto das eleições de 25 de Abril [Eleições para a Assembleia Constituinte de 1975], pelos estabelecimentos militares, escolas, etc., e oferecidos às nossas principais autoridades civis e militares, que muito os apreciaram” esclarece José de Azeredo Perdigão.

Por deliberação do Conselho de Administração 4.000 cópias dos cartazes são postas à venda “na recepção da Sede da Fundação e no átrio do Museu, ao preço unitário de 50$00 (cinquenta escudos)”.

Nesse ano e nos anos seguintes os cartazes serão um sucesso de vendas, não só em Portugal, como no estrangeiro.

Concluído o processo de edição, distribuição e comercialização dos cartazes, havia que dar um destino aos originais. Ainda em maio de 1975, José de Azeredo Perdigão propõe a Vieira da Silva “que os originais ficassem a pertencer à Fundação Calouste Gulbenkian”. Solicita, para essa pretensão, a concordância da pintora e que esta indique “o valor venal que atribui aos ditos originais”.

Pouco depois, Vieira da Silva, a partir de La Maréchalerie, a sua propriedade em Yèvre-le-Châtel, escreve a Perdigão e dá o aval à pretensão do presidente: “Estou plenamente de acordo com o destino que quiser dar aos originais dos meus posters. Tudo o que fizer está bem feito. Peço-lhe que disponha deles como melhor entender”.

O presidente agradece a decisão da pintora “quanto ao destino dos posters de sua autoria”, e acrescenta que a Fundação fará “a esse respeito, o melhor que for possível”.

Perdigão informa o Conselho de Administração das conversações com Vieira da Silva. Contudo, “dado que se torna difícil, no momento presente, determinar-se o valor de cada cartaz”, propõe “que se encarregasse uma agência especializada de proceder ao leilão dos referidos cartazes podendo a Fundação, em face dos preços que os mesmos atingissem, comprá-los ou não”. A proposta é aceite pelo Conselho.

A Fundação adquire para si um dos originais — A poesia está na rua I —, que viria a integrar a coleção do Centro de Arte Moderna. Já quanto ao cartaz A poesia está na rua II não foi possível, até ao momento, localizar, quer nos Arquivos Gulbenkian, quer nas entidades externas contactadas, qualquer informação sobre o seu destino.

Em contrapartida, sabemos que em novembro de 1975 é concedido um subsídio significativo à Associação dos Deficientes das Forças Armadas, refletindo, porventura, o desejo inicial de Vieira da Silva. Por deliberação do Conselho de Administração, com base na proposta de Augusto Reimão Pinto, diretor do Serviço de Saúde e Proteção Social, é constituída uma dotação de 300.000$00 a favor da Associação, “para a aquisição de cadeiras de rodas e cadeiras motorizadas para os seus associados e para comparticipar na compra de viaturas automóveis”. Esse apoio contribuiria de forma significativa para a reabilitação e integração de muitos deficientes das forças armadas “que se viam votados à marginalização social e profissional”.

São conhecidos alguns testemunhos posteriores de Maria Helena Vieira da Silva relativos à produção destes cartazes.

Em 1976, durante a rodagem do filme documentário sobre o casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes intitulado Ma femme chamada bicho, de José Álvaro Morais, uma produção do Centro Português de Cinema subsidiada pela Fundação Gulbenkian, a pintora recorda o episódio dos cartazes:

“A Sophia veio-me ver e pediu-me para fazer um desenho para festejar o 25 de Abril, um cartaz. E ela falava-me na rua, ela queria que eu fizesse um cartaz com as pessoas na rua, e depois foi-se embora e eu comecei a fazer um cartaz. E quando o fiz, eu gostei, mas ao mesmo tempo disse, “mas isto é muito abstrato, ninguém compreende o que eu fiz, vou fazer outro”. E depois fiz um outro com uma rua e com pessoas a andar, na rua, e os soldados e os cravos encarnados. E depois a Sophia voltou e viu o cartaz e disse-me, “mas está muito bem o seu cartaz, o primeiro está muito bem, foi no Largo do Carmo que as coisas se passaram” e então eu aí disse, “mas é verdade”, porque eu quando lia os jornais só via o Largo do Carmo, mas eu tinha-me esquecido e ao mesmo tempo eu conheço muito bem o Carmo, é um dos sítios de Lisboa que eu conheço melhor. Mas é curioso, eu não via, e no fundo era o que eu trazia em mim e na cabeça, pelas coisas que eu tinha lido nos jornais. E depois então, ela levou os dois cartazes e a Gulbenkian editou os dois.”

Mais tarde, em 1978, numa série de conversas intimistas que a escritora Anne Philipe tem com o casal de pintores, compiladas e publicadas em Paris nesse ano pelas Éditions Gallimard, com o título L’éclat de la lumière (O fulgor da luz), Vieira da Silva retomaria o tema dos cartazes:

“Uma das minhas amigas, Sophia Andresen, é deputada socialista em Portugal e escritora, também. Pediu-me ela que fizesse um cartaz para festejar o 25 de Abril. “Faz o que te apetecer — disse-me ela — a multidão, a rua, o que quiseres, mas é urgente.” Reflecti, e pus mãos à obra, deixando-me guiar pelo que naturalmente me ia vindo. Quando acabei, olhei para o que tinha feito e fiquei muito inquieta: parecia um vitral, via-se uma igreja e umas ruínas. “Neste momento lá em Portugal — pensei eu — a política tem prioridade, vão dizer que fiz uma pintura religiosa. Não pode ser, tenho que projectar outra coisa” e comecei a traçar uma rua antiga de Lisboa com uma multidão e cravos vermelhos. Quando a minha amiga voltou, escolheu o primeiro desenho (acabou por levar ambos). Perguntei-lhe “Não irão dizer que é uma beatice? — Não — disse ela —, foi ali mesmo que tudo se passou.” Lembrei-me então de que ao ler as notícias de Portugal sempre imaginava as manifestações descritas, diante de uma igreja que eu conhecia muito bem e da qual gostava, mas que esquecera por completo enquanto trabalhava. E, no entanto, tenho boa memória. O segundo cartaz era uma rua muito próxima dessa igreja, mas não fora ela o centro de tudo o que se passara e sim a tal ruína gótica, o Convento do Carmo.”

Curiosa é ainda a analogia que o crítico de arte Rui Mário Gonçalves faz, já nos inícios da década de 1980, entre as gravuras que a artista executara de André Malraux e os cartazes:

“Nestes trabalhos — A poesia está na rua — não pode deixar de se reconhecerem rostos parecidos com o de Malraux. Para ela, e para os intelectuais da sua geração, Malraux encarna o internacional empenho na luta contra os fascismos ibéricos. Coincidência feliz, esta.”

De facto, quando ocorre o 25 de Abril, Vieira da Silva encontrava-se em fase de conclusão de um conjunto de gravuras que retratava o escritor e crítico francês André Malraux e é logo depois que se dedica à conceção dos cartazes propostos por Sophia. A este propósito refira-se que a Fundação adquire, em 1976, as gravuras retratando André Malraux, num total de cinco, vindo a integrar mais tarde a coleção do Centro de Arte Moderna.

Os cartazes A poesia está na rua tornaram-se ícones de um momento histórico do País, do triunfo da Democracia, e da sua celebração. Sobre eles escreve Vieira da Silva: “se fiz dois cartazes para festejar o 25 de Abril foi por o 25 de Abril ser um momento histórico. O fim de uma guerra que durava há 13 anos, mais do que durou a guerra de Troia. E o fim de uma ditadura”.

Série

Dos Arquivos

Momentos relevantes na história de Calouste Gulbenkian e da Fundação Gulbenkian em Portugal e no resto do mundo.

Explorar a série

Definição de Cookies

Definição de Cookies

Este website usa cookies para melhorar a sua experiência de navegação, a segurança e o desempenho do website. Podendo também utilizar cookies para partilha de informação em redes sociais e para apresentar mensagens e anúncios publicitários, à medida dos seus interesses, tanto na nossa página como noutras.