Os ofícios das nossas Mulheres
Exposição virtual inspirada pela exposição As mulheres de Maria Lamas, apresentada na Fundação Calouste Gulbenkian com curadoria de Jorge Calado (janeiro-maio 2024).
Partindo de imagens fotográficas das coleções da Biblioteca de Arte, esta exposição pretende mostrar aspetos menos divulgados do universo do trabalho feminino em Portugal no século XX, com um destaque para o período da Ditadura.
Elegeram-se imagens que integram a coleção Portugal a cores, que reúne 753 fotografias anónimas (35 mm), imagens recolhidas pelos fotógrafos Mário e Horácio Novais entre os anos de 1940 e a década de 1960, e imagens realizadas pelo fotógrafo Abreu Nunes como fontes para esta reflexão.
Desta pesquisa resultou um número apreciável de fotografias que retratam mulheres nas mais variadas tarefas laborais, tanto em meio rural, como nas cidades. A relação entre as mulheres e o trabalho é o fio condutor desta exposição fotográfica, que nos fará visitar todo o país e escutar o testemunho de algumas mulheres que se têm dedicado ao estudo do papel da mulher durante o Estado Novo.
A mulher no Estado Novo – a “fada do lar”
O Estado Novo esperava que as mulheres fossem essencialmente “fadas do lar” e “pilares da família”, isto é, que fossem esposas dedicadas, mães extremosas e donas de casa exemplares.
Era nestes papéis que surgiam nas narrativas difundidas pelo Secretariado Nacional de Propaganda (SPN) e nos discursos do ditador António de Oliveira Salazar. De facto, esta ideologia, inspirada numa moral católica conservadora, confinava as mulheres à esfera doméstica, impedindo-as de alcançar quaisquer papéis na esfera pública. No entanto, a realidade vivida no país era muito diferente e divergia significativamente deste retrato idealista da situação da mulher na sociedade.
A Constituição do Estado Novo, que durou entre 1933 até à Revolução de Abril de 1974, consignava o papel subalterno das mulheres na sociedade, em concordância com Código Civil em vigor, datado de 1867. No seu Artigo 5.º, onde se enunciava o princípio da igualdade entre os cidadãos perante a lei, destacava-se uma exceção: negava-se às mulheres o direito de ocupar cargos públicos, devido às suas diferenças biológicas e ao seu papel fundamental no bem-estar da família. Por outras palavras, a partir de 1933 a possibilidade das mulheres trabalharem fora de casa ficou muito limitada (também pelo Estatuto do Trabalho Nacional, desse mesmo ano).
Esta exceção teve implicações sociais de longo alcance, perpetuando-se uma noção de inferioridade das mulheres, relegando-as a um papel secundário na sociedade e na estrutura familiar, num legado que continua a moldar a nossa compreensão dos papéis de género no século XXI.
A realidade quotidiana: a mulher trabalhadora
No campo como nas cidades, as mulheres portuguesas sempre tiveram atividades laborais para além das suas tarefas domésticas, contrariando a imagem promovida pelo Estado Novo.
A partir do início da década de 1960, o aumento da emigração masculina e a guerra colonial amplificaram a obrigação do trabalho feminino como sustento da família. As mulheres que não tinham necessidade de trabalhar – dentro ou fora de casa – pertenciam às famílias da elite económica e social do regime.
Nas suas entrevistas, as três convidadas referem a diversidade de profissões femininas nas várias regiões de Portugal durante o período do Estado Novo.
Nas áreas costeiras, as profissões mais comuns estavam associadas às atividades marítimas e piscatórias; no interior dominavam a agricultura e a pecuária, complementadas pelo artesanato; nas cidades as mulheres trabalhavam em fábricas, hospitais, serviços e comércio; nas zonas fronteiriças colaboravam ainda com os seus companheiros nas atividades relacionadas com o contrabando.
Ao longo do litoral, as mulheres foram uma parte fundamental nas atividades piscatórias. Se geralmente não faziam parte das tripulações que partiram para o mar, ajudavam a transportar os barcos para terra e a reparar as redes, e eram elas que vendiam o peixe, o secavam e trabalhavam na indústria conserveira.
Em algumas localidades, as mulheres dedicavam-se também a ofícios artesanais, sendo famosos os chapéus e cestas das aveirenses e as rendas de bilros das mulheres de Vila do Conde e de Peniche, por exemplo.
Nos campos do Alentejo as mulheres trabalhavam na ceifa dos cereais e na apanha da azeitona. No Ribatejo, era o ciclo do arroz que as ocupava. No Douro e Minho predominavam os trabalhos relacionados com a vinha, e em Trás-os-Montes e nas Beiras às fainas agrícolas juntava-se o pastoreio. Já nos arquipélagos da Madeira e dos Açores, as culturas do chá e do tabaco não se faziam sem o labor feminino. Ou seja, em todas as regiões do país as mulheres trabalhavam arduamente e compartilhavam com o resto da família a dureza das fainas agrícolas e as difíceis condições de vida.
Desde finais do século XIX que Lisboa e o Porto foram as duas cidades portuguesas onde se localizou um maior número de indústrias. No caso de Lisboa, as fábricas repartiam-se por diversos pontos da cidade, havendo uma maior concentração na zona de Alcântara e na parte oriental. Em regiões do litoral do país, a norte do rio Mondego e no Algarve existiam diversas fábricas conserveiras, e na zona da Beira interior surgiram núcleos fabris importantes ligados à produção têxtil.
As profissões consideradas adequadas pelo Estado Novo ao suposto carácter frágil e maternal das mulheres eram, como se pode calcular, as que se podiam relacionar com essas características: governantas, serviçais, enfermeiras e professoras.
Ao longos dos tempos, e em diversas sociedades e culturas, a “casa” tem sido para as mulheres um espaço de trabalho invisível e, paradoxalmente, um espaço de alguma liberdade e poder.
Como diz o ditado popular “Lá em casa manda ela, mas nela mando eu”. Para além da gestão dos assuntos do lar e da família, a casa era também o espaço onde podiam exercer outras atividades, como a costura, que lhes permitiam contribuir para a economia familiar. A aceitação social da aptidão “natural” das mulheres para as tarefas domésticas foi construída por visões religiosas, convicções políticas e reforçada pela exclusão que as mulheres sofreram durante muitos séculos no acesso à educação. Infelizmente, em algumas partes do mundo, esta é ainda a situação vivida por muitas meninas e mulheres.
A mulher trabalhadora no Portugal de hoje
Qual é o impacto do ideal feminino promovido pelo Estado Novo ao longo de 48 anos na sociedade portuguesa do novo milénio? De que modo as diferenças de salário que continuam a existir entre homens e mulheres, assim como a falta de reconhecimento das tarefas domésticas, ainda estão impregnadas e perpetuam esse ideário conservador? A estas questões juntam-se outras, relacionadas com o assédio sexual e com a dificuldade das mulheres atingiram cargos de direção nas esferas económicas e políticas do país. Quais são hoje os “ofícios” das mulheres portuguesas?
Ficha técnica
Curadoria
Enrico Porfido e Juan Gonzalez del Cerro
Direção de arte e design gráfico
Juan Gonzalez del Cerro
Pesquisa documental
Ana Barata e Enrico Porfido
Revisão
Ana Barata
Edição
Fundação Calouste Gulbenkian – Biblioteca de Arte e Arquivos
Agradecimentos
A equipa curatorial gostaria de agradecer a Emília Ferreira, Joana Ralão, Raquel Freire, Fernanda Rollo, assim como ao grupo de pesquisa "Resistência no Feminino" – da Universidade Nova de Lisboa, responsável pela investigação do projeto Memória para todos.
Memória para todos é um projeto que promove o estudo, a organização e a disseminação do património histórico, cultural e tecnológico de Portugal. Os conteúdos reunidos com a participação e envolvimento dos cidadãos e instituições são disponibilizados on-line em acesso aberto. Eis alguns dos testemunhos recolhidos por todo o país, em que mulheres nos contam a sua história e as suas experiências de trabalho durante o Estado Novo.
Vídeos
Curadoria
Enrico Porfido e Juan Gonzalez del Cerro
Participação
Emília Ferreira, Joana Ralão e Raquel Freire
Biografias
Emília Ferreira
Historiadora da arte, crítica literária, crítica de arte, cronista, conferencista e curadora de exposições de artes plásticas e educadora. Tem colaborado com o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, e foi membro da equipa da Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea (2000-2017). Desde 2017 é diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado.
Joana Ralão
Licenciada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Mestre em História Contemporânea na mesma instituição. Na sua dissertação de mestrado estudou a presença e participação das mulheres no movimento estudantil da década de 70. É investigadora integrada do HTC – História, Territórios e Comunidades da NOVA-FCSH/CFE.
Raquel Freire
Realizadora, argumentista, escritora, produtora e mãe. Os filmes Rio Vermelho, Rasganço, Esta é a minha cara, Veneno cura, Dreamocracy estrearam em festivais internacionais de cinema como Veneza, Turim, São Paulo, Montreal, Leeds, Clermont-Ferrand, Porto PosDoc e nas salas de cinema. Realizou e produziu a trilogia Histórias das mulheres do meu país que estreou na RTP1. Realizou e produziu o filme Mulheres do meu país. Está a realizar o filme e a série Mulheres de Abril.