Libreto de João Guilherme Ripper baseado no livro Cartas Portuguesas, no rito latino e na poesia de Rodrigues Lobo (1580-1622).
Espaço cénico baseado no original de Nicolas Boni.
Encomenda conjunta da Orquestra Sinfónica de São Paulo e da Fundação Calouste Gulbenkian.
Composição: 2019-2020
Estreia: São Paulo, 28 de agosto de 2020
Duração: c. 40 min.
Foi em 2016 quando pela primeira vez ouvi falar nas Cartas Portuguesas. Encontrava-me na cidade alentejana de Serpa para acompanhar a montagem da minha ópera Onheama, produzida pelo Teatro Nacional de São Carlos de Lisboa para o festival Terras Sem Sombra. José António Falcão, Diretor do FTSS e especialista no património artístico e cultural do Alentejo, recomendou-me que visitasse o famoso Convento de N. Sª. da Conceição, no município de Beja, que ficava a pouca distância dali. Falou-me de Soror Mariana Alcoforado (1640-1723), sua moradora mais famosa, que deixou registada em cinco cartas a ardente paixão pelo oficial francês Noël de Chamilly. Suas linhas acabaram publicadas em Paris no ano de 1669, sem autorização da remetente, sob o título “Lettres d’amour d’une religieuse Portugaise écrites au Chevalier de C. - Officier Francois en Portugal”.
A ideia de escrever uma ópera sobre o tema ficou em gestação durante dois anos, até que Arthur Nestrovski, Diretor Artístico da Orquestra Sinfónica de São Paulo, me encomendou uma obra para a temporada 2020 do projeto SP-LX, que reúne a OSESP e a Orquestra Gulbenkian de Lisboa. Creio que não passaram dez segundos entre o convite, a minha proposta de escrever Cartas Portuguesas e sua entusiasmada concordância. Conhecia a competência e paixão com que Arthur Nestrovski transita pela música e literatura, mas não sabia que ele havia sido o editor de Cartas Portuguesas na Coleção Lazuli, da Imago Editora, com retroversão de Marilene Felinto. Tudo conspirava a favor de Mariana Alcoforado.
Ao começar a escrever o libreto, logo notei que o caráter quase monotemático das cartas tornaria difícil o desenvolvimento do drama. Decidi, então, ampliar o foco, situando Mariana em sua vida conventual, dentro do contexto histórico e religioso da época. Introduzi outros textos e outras músicas como elementos de contraste às cartas para provocar no enredo o jogo de chiaroscuro tão caro ao Barroco: o rito latino da Liturgia das Horas, um trecho de Cântico dos cânticos e o gregoriano Veni Sancte Spiritus. Devo a Maria Silva Prado Lessa, minha enteada e especialista em literatura portuguesa, a descoberta do lindo poema Leanor, de Rodrigues Lobo (1580-1620), usado na ária em que Mariana recorda a infância.
Ao compor a música, lancei mão de diferentes linguagens harmónicas para conseguir a expressão dramática desejada, tendo sempre como norte a adequação do texto à prosódia, o contorno melódico e a tipologia vocal da solista. Estruturei a sucessão de recitativos e árias para que ocorressem sem interrupção, num fluxo musical contínuo que Wagner chamou de “a arte da transição”. Além de acompanhar a solista, a orquestra executa interlúdios instrumentais que retratam os sentimentos conflituantes da personagem e evocam a ambiência sonora do Convento de Beja.
Agradeço imensamente aos diretores Arthur Nestrovski e a Risto Nieminen o privilégio de estrear a obra com as fantásticas OSESP e Orquestra Gulbenkian. Cartas Portuguesas é uma ópera sobre a clausura, a solidão e o afastamento. Coincidentemente, estreou no momento em que muitos de nós estávamos isolados por causa da pandemia de Covid-19. Assim como Mariana Alcoforado, temos ainda de conviver sozinhos com emoções, conflitos e dramas dentro das quatro paredes de nossa alma.
João Guilherme Ripper