Ravel: La Valse

Orquestra Gulbenkian / José Eduardo Gomes

A Orquestra Gulbenkian interpreta a obra "La Valse", do compositor francês Maurice Ravel, sob a direção do maestro José Eduardo Gomes.
Luís M. Santos 20 jul 2023 13 min

Maurice Ravel foi um dos compositores mais originais do início do século XX, com uma obra musical de grande sofisticação, sensibilidade e refinamento. Apesar de nunca se ter assumido como o principal rosto do Modernismo, com a morte de Debussy, em 1918, passou a ser visto como o principal compositor francês em atividade. Na viragem da primeira década do século XX foram inúmeros os projetos teatrais em que esteve envolvido. A oportunidade mais relevante neste âmbito surgiu em 1909, com a encomenda de Daphnis et Chloé para os Ballets Russes de Sergei Diaghilev, sobre um argumento em um ato e três cenas, concebido por Mikhail Fokine e baseado num romance pastoral do poeta greco-romano Longus, que viveu no século II. Por altura da sua estreia em junho de 1912, em Paris, com coreografia também de Fokine e com Nijinski e Karsavina nos principais papéis, o bailado não logrou alcançar um sucesso significativo, em grande parte devido ao facto de ter ocorrido ainda no rescaldo do grande choque causado dez dias antes pela coreografia de Nijinski em L’après-midi d’un faune. Não obstante, esta “symphonie choréographique”, como o próprio compositor a descreveu, é normalmente encarada como a sua obra mais impressionante e bem conseguida, assumindo-se justamente como uma das principais partituras de bailado do século XX. Com efeito, Daphnis et Chloé destaca-se não só pelas suas dimensões, duração e recursos instrumentais exigidos, mas também pelas melodias exuberantes, pelas harmonias luxuriantes e pela orquestração sumptuosa, encerrando alguma da música mais arrebatadora alguma vez composta por Ravel.

Devido às suas dimensões, o bailado é normalmente apresentado nas salas de concerto sob a forma das duas suites orquestrais que o compositor extraiu da versão original, as quais podem ser executadas com ou sem o concurso do coro. A Suite n.º 1, de 1911, integra as duas primeiras cenas, as quais retratam o amor entre Daphnis e Chloé, o rapto desta última levado a cabo por um bando de piratas e ainda a sua evasão. Já a Suite n.º 2, que se seguiu à conclusão da partitura original em 1912, junta os três números da sua terceira e última cena, que o compositor renomeou como Lever du jour, Pantomime e Danse générale. Esta Suite n.º 2 é particularmente popular, e de facto é nesta versão que esta música é mais comummente interpretada. Nesta terceira cena, a ação tem lugar numa floresta e inicia-se com o despontar do dia após a noite terrífica em que os piratas haviam raptado Chloé. Os sons abafados e contidos do amanhecer dão gradualmente lugar a uma linha melódica mais dinâmica nas cordas, a qual cresce intensamente até se transformar num tema lírico e apaixonado. Toda esta passagem corresponde ao momento em que Daphnis, adormecido junto à gruta das ninfas, é acordado por pastores e procura ansiosamente por Chloé, divisando-a finalmente, rodeada e protegida por pastoras. No instante em que os dois amantes se abraçam inebriados, a melodia atinge um ponto culminante de paixão. Em agradecimento a Pan, cuja intervenção salvara Chloé dos raptores, os dois amantes representam a história desse deus e da sua amada ninfa, Syrinx, que se havia transformado em bambu e que ele colhera na forma do seu famoso instrumento musical. Envolvida pelo acompanhamento quente e sedutor das flautas, que evoca precisamente esse episódio, Chloé dança, cada vez mais animada, até que, subitamente, o movimento se quebra por completo e ela cai langorosamente nos braços de Daphnis. Num breve mas apaixonado epílogo, os amantes juram o seu amor eterno e fazem as suas oferendas perante o altar das ninfas. Entretanto, entra em cena um grupo de jovens mulheres, vestidas como bacantes e tocando tamborins, seguidas por um grupo de homens igualmente jovens, num ambiente de grande alvoroço e sensualidade. Neste final estimulante e arrebatador, Ravel emprega a totalidade dos recursos orquestrais à sua disposição para evocar uma voluptuosa celebração dionisíaca do amor físico.

Corria o ano de 1906 quando Ravel começou a esboçar a peça sinfónica Wien, concebida enquanto tributo à valsa vienense, género que relacionava com “a ideia do fantástico redemoinho do destino”. O compositor acabaria, contudo, por se envolver noutros projetos, e Wien nunca chegou a tomar forma. Em 1919, terminada a Grande Guerra, retomou a intenção de compor a peça, motivado agora pela encomenda de Diaghilev para um novo bailado. Mas o mundo era agora um lugar diferente e a própria valsa enquanto género perdera a conotação de uma despreocupada joie de vivre, assumindo antes a tonalidade sinistra da recordação amarga de uma era desvanecida. Conquanto Ravel tenha negado tratar-se de uma alusão caricatural ou trágica à Europa do pós-Guerra, La Valse, composta entre 1919 e 1920, surgia assim como uma fantasia apocalíptica em que é criada a sensação de uma superfície festiva sobre uma perturbadora voz subterrânea – o intervalo de trítono, historicamente conotado com o diabólico, permeia toda a dimensão melódica da obra. O bailado seria, porém, completamente desconsiderado por Diaghilev, episódio que aliás ditou o corte de relações entre ambos. A obra acabaria por ser publicada enquanto poème choréographique, adquirindo grande popularidade nas salas de concerto.

As breves linhas que Ravel deixou como argumento sugerem um cenário coberto de uma densa névoa, cuja dissipação gradual nos permite distinguir pares que dançam a valsa num imenso salão de uma corte imperial, por volta de 1855, uma cena que se torna cada vez mais brilhante. A obra inicia-se por entre as brumas com os murmúrios perturbadores dos contrabaixos. Gradualmente surgem fragmentos de valsas, à distância, que conduzem a uma melodia deprimida nos fagotes e violas. Cabe à harpa libertar a luxuriante melodia de valsa que, conduzida pelos violinos, é tomada por toda a orquestra. Segue-se uma sequência de valsas de feições distintas: umas mais harmoniosas, outras mais animadas, outras ainda mais imponentes. No momento em que a música parece dirigir-se para um ponto culminante, regressa o nevoeiro inicial, que inaugura a segunda parte da peça. Todas as melodias da secção anterior reaparecem como memórias inesperadamente inquietantes, enquanto a valsa começa a entrar num turbilhão imparável. Mas mais uma vez Ravel quebra o ímpeto, iniciando-se uma sequência desconcertante que conduz a orquestra a uma dança macabra. O compasso final – o único que não está em tempo de valsa – encerra a obra de modo brutal e implacável.


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Maurice Ravel

La Valse

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