Mahler: Sinfonia n.º 2

Coro e Orquestra Gulbenkian / Hannu Lintu

Sob a direção de Hannu Lintu, o Coro e a Orquestra Gulbenkian interpretam a Sinfonia n.º 2 ("Ressurreição"), de Gustav Mahler.
Luís M. Santos 24 nov 2023 89 min

Em 1888, numa altura em que ainda trabalhava para concluir a sua Sinfonia n.º 1, Gustav Mahler compôs um poema sinfónico, Totenfeier, que dizia representar as cerimónias fúnebres em homenagem ao herói evocado naquela obra, cuja morte levantara todo um conjunto de questões existenciais. Indeciso sobre o rumo a dar a essa peça, decidiu finalmente incluí-la numa nova sinfonia, compondo os restantes andamentos entre 1893 e 1894. O processo de composição da obra parece ter estado em grande parte dependente de uma conceptualização narrativa da sua estrutura. Com efeito, o próprio compositor concebeu diversas versões de um programa narrativo para a sinfonia, sugerindo nomeadamente uma progressão desde um estado de ansiedade aparentemente insolúvel, até que a tensão é finalmente resolvida, numa reinterpretação da mitologia judaico-cristã, no momento do apocalipse e subsequente redenção (de onde terá derivado o título “Ressurreição”, atribuído a posteriori). A Sinfonia n.º 2, para soprano e contralto solistas, coro e orquestra, seria assim estreada em 1895, em Berlim, sob a direção de Mahler, mas alcançaria uma popularidade alargada apenas na versão revista de 1903, na sequência do sucesso obtido com a estreia da Sinfonia n.º 3, em 1902, que aliás fora planeada enquanto uma sequela ambiciosa para a sua antecedente, tendo constituído o primeiro grande êxito público de Mahler enquanto compositor sinfónico.

A obra inicia-se com um Allegro maestoso que, de acordo com o programa delineado pelo compositor, constitui uma meditação exasperada sobre a condição mortal do ser humano. Aludindo em diversos aspetos ao andamento lento da Eroica de Beethoven, esta é uma forma sonata que coloca em evidência uma dialética temática e emocional, nomeadamente por meio do contraste retórico produzido pela oposição entre os materiais do primeiro tema, uma marcha fúnebre de caráter feroz, em Dó menor, e os materiais do segundo tema, em Mi maior, uma música caracterizada pelo seu lirismo delicado, bem como pela sua grande riqueza harmónica, textural e expressiva. Não obstante a complexidade do seu plano formal, a ênfase conferida a dissonâncias harmónicas e os seus níveis dinâmicos extremos, este andamento não deixa de evidenciar uma cuidada clareza textural e contrapontística.

Segue-se um Andante moderato – cujo material temático remontará ainda a 1888 – que intencionalmente contrasta a vários níveis com o andamento precedente. Na intenção de sugerir uma inocente e nostálgica visão retrospetiva da bem-aventurada juventude do herói, o andamento foi composto à maneira de um suave Ländler, em Lá bemol maior, projetando um ambiente bucólico de um lirismo sofisticado que em dois momentos é sujeito às inquietantes intromissões da ideia de morte. Deixando de parte o ambiente campestre, o compositor apresenta, logo após, uma retrospetiva grotesca do passado do herói, com a qual terá procurado traduzir uma visão da esterilidade da vida. Trata-se agora de um scherzo em Dó menor (In ruhig fließender Bewegung) que, sendo permeado por elementos energéticos do scherzo beethoveniano, apresenta uma reformulação sinfónica de material usado na canção Des Antonius von Padua Fischpredigt (“O sermão de Santo António de Pádua aos peixes”), composta em 1893 sobre textos de Des Knaben Wunderhorn. Dedicada às tentativas infrutíferas de Santo António de pregar a moral cristã aos peixes indiferentes, a canção é neste andamento associada à ideia de alienação subjetiva do protagonista em relação à sociedade convencional, tomando, desta feita, a forma de uma valsa sardónica que evoca de modo brilhante o cinismo do texto.

No quarto andamento (Urlicht: Sehr feierlich, aber schlicht) o compositor abandona o tom humorístico para, na tonalidade distante de Ré bemol maior, evocar o desejo de libertação das aflições mundanas rumo à divindade, recorrendo para esse efeito à canção Urlicht, que havia composto também em 1893 sobre textos de Des Knaben Wunderhorn. Desta feita, cabe ao contralto solista protagonizar uma piedosa enunciação de fé, em linhas de uma expressividade mais cromática e quase erótica. A simplicidade deste momento é, paradoxalmente, produzida através de uma acentuada complexidade métrica (derivada de uma atenção extrema à prosódia), bem como de uma orquestração bastante detalhada e inventiva, como se de música de câmara se tratasse.

Por fim, o andamento final (Im Tempo des Scherzos) está construído em duas grandes secções. Numa primeira parte instrumental em forma sonata, em torno de Fá menor, uma introdução expansiva recupera o ambiente fúnebre do início da sinfonia, assombrado agora pelo tema do Dies irae, após o que sobrevém uma grandiosa marcha orquestral, programaticamente interpretada durante a procissão para o Juízo Final, a qual culmina no momento em que à distância soa a última trombeta do apocalipse. Inicia-se então uma segunda parte, espécie de grande cantata sinfónica, em que o julgamento é revertido em redenção: em Sol bemol maior, o coro murmura, praticamente no limite da audibilidade, duas estrofes do hino Die Auferstehung (“A Ressurreição”), de G. F. Klopstock, emergindo dessas sonoridades corais o arrebatador dueto do soprano e do contralto, que elaboram as suas linhas solísticas sobre versos do próprio Mahler. Um grande crescendo conduz a uma peroração de júbilo, em Mi bemol maior, na qual o compositor faz uso da totalidade das forças corais e orquestrais ao seu dispor na projeção de uma esperança fervorosa numa renovação transcendente.


Intérpretes

  • Maestro
  • Soprano
  • Contralto

Programa

Gustav Mahler

Sinfonia n.º 2, em Dó menor, Ressurreição
1. Allegro maestoso
2. Andante moderato
3. In ruhig fließender Bewegung (Andamento tranquilo e fluido)
4. Urlicht: Sehr feierlich, aber schlicht (Luz primordial: Muito solene, mas simples)
5. Im Tempo des Scherzos (No tempo de um Scherzo)

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