Mahler: Sinfonia n.º 2
Coro e Orquestra Gulbenkian / Hannu Lintu
Em 1888, numa altura em que ainda trabalhava para concluir a sua Sinfonia n.º 1, Gustav Mahler compôs um poema sinfónico, Totenfeier, que dizia representar as cerimónias fúnebres em homenagem ao herói evocado naquela obra, cuja morte levantara todo um conjunto de questões existenciais. Indeciso sobre o rumo a dar a essa peça, decidiu finalmente incluí-la numa nova sinfonia, compondo os restantes andamentos entre 1893 e 1894. O processo de composição da obra parece ter estado em grande parte dependente de uma conceptualização narrativa da sua estrutura. Com efeito, o próprio compositor concebeu diversas versões de um programa narrativo para a sinfonia, sugerindo nomeadamente uma progressão desde um estado de ansiedade aparentemente insolúvel, até que a tensão é finalmente resolvida, numa reinterpretação da mitologia judaico-cristã, no momento do apocalipse e subsequente redenção (de onde terá derivado o título “Ressurreição”, atribuído a posteriori). A Sinfonia n.º 2, para soprano e contralto solistas, coro e orquestra, seria assim estreada em 1895, em Berlim, sob a direção de Mahler, mas alcançaria uma popularidade alargada apenas na versão revista de 1903, na sequência do sucesso obtido com a estreia da Sinfonia n.º 3, em 1902, que aliás fora planeada enquanto uma sequela ambiciosa para a sua antecedente, tendo constituído o primeiro grande êxito público de Mahler enquanto compositor sinfónico.
A obra inicia-se com um Allegro maestoso que, de acordo com o programa delineado pelo compositor, constitui uma meditação exasperada sobre a condição mortal do ser humano. Aludindo em diversos aspetos ao andamento lento da Eroica de Beethoven, esta é uma forma sonata que coloca em evidência uma dialética temática e emocional, nomeadamente por meio do contraste retórico produzido pela oposição entre os materiais do primeiro tema, uma marcha fúnebre de caráter feroz, em Dó menor, e os materiais do segundo tema, em Mi maior, uma música caracterizada pelo seu lirismo delicado, bem como pela sua grande riqueza harmónica, textural e expressiva. Não obstante a complexidade do seu plano formal, a ênfase conferida a dissonâncias harmónicas e os seus níveis dinâmicos extremos, este andamento não deixa de evidenciar uma cuidada clareza textural e contrapontística.
Segue-se um Andante moderato – cujo material temático remontará ainda a 1888 – que intencionalmente contrasta a vários níveis com o andamento precedente. Na intenção de sugerir uma inocente e nostálgica visão retrospetiva da bem-aventurada juventude do herói, o andamento foi composto à maneira de um suave Ländler, em Lá bemol maior, projetando um ambiente bucólico de um lirismo sofisticado que em dois momentos é sujeito às inquietantes intromissões da ideia de morte. Deixando de parte o ambiente campestre, o compositor apresenta, logo após, uma retrospetiva grotesca do passado do herói, com a qual terá procurado traduzir uma visão da esterilidade da vida. Trata-se agora de um scherzo em Dó menor (In ruhig fließender Bewegung) que, sendo permeado por elementos energéticos do scherzo beethoveniano, apresenta uma reformulação sinfónica de material usado na canção Des Antonius von Padua Fischpredigt (“O sermão de Santo António de Pádua aos peixes”), composta em 1893 sobre textos de Des Knaben Wunderhorn. Dedicada às tentativas infrutíferas de Santo António de pregar a moral cristã aos peixes indiferentes, a canção é neste andamento associada à ideia de alienação subjetiva do protagonista em relação à sociedade convencional, tomando, desta feita, a forma de uma valsa sardónica que evoca de modo brilhante o cinismo do texto.
No quarto andamento (Urlicht: Sehr feierlich, aber schlicht) o compositor abandona o tom humorístico para, na tonalidade distante de Ré bemol maior, evocar o desejo de libertação das aflições mundanas rumo à divindade, recorrendo para esse efeito à canção Urlicht, que havia composto também em 1893 sobre textos de Des Knaben Wunderhorn. Desta feita, cabe ao contralto solista protagonizar uma piedosa enunciação de fé, em linhas de uma expressividade mais cromática e quase erótica. A simplicidade deste momento é, paradoxalmente, produzida através de uma acentuada complexidade métrica (derivada de uma atenção extrema à prosódia), bem como de uma orquestração bastante detalhada e inventiva, como se de música de câmara se tratasse.
Por fim, o andamento final (Im Tempo des Scherzos) está construído em duas grandes secções. Numa primeira parte instrumental em forma sonata, em torno de Fá menor, uma introdução expansiva recupera o ambiente fúnebre do início da sinfonia, assombrado agora pelo tema do Dies irae, após o que sobrevém uma grandiosa marcha orquestral, programaticamente interpretada durante a procissão para o Juízo Final, a qual culmina no momento em que à distância soa a última trombeta do apocalipse. Inicia-se então uma segunda parte, espécie de grande cantata sinfónica, em que o julgamento é revertido em redenção: em Sol bemol maior, o coro murmura, praticamente no limite da audibilidade, duas estrofes do hino Die Auferstehung (“A Ressurreição”), de G. F. Klopstock, emergindo dessas sonoridades corais o arrebatador dueto do soprano e do contralto, que elaboram as suas linhas solísticas sobre versos do próprio Mahler. Um grande crescendo conduz a uma peroração de júbilo, em Mi bemol maior, na qual o compositor faz uso da totalidade das forças corais e orquestrais ao seu dispor na projeção de uma esperança fervorosa numa renovação transcendente.
Intérpretes
- Maestro
- Soprano
- Contralto
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Coro Gulbenkian
Fundado em 1964, o Coro Gulbenkian conta presentemente com uma formação sinfónica de cerca de cem cantores. Pode atuar em grupos vocais mais reduzidos, apresentando-se tanto a cappella como em colaboração com a Orquestra Gulbenkian ou com outros agrupamentos para a interpretação das grandes obras. No domínio da música contemporânea, tem apresentado, frequentemente em estreia absoluta, inúmeras obras de compositores portugueses e estrangeiros. Tem colaborado regularmente com prestigiadas orquestras, entre as quais a Philharmonia Orchestra de Londres, a Freiburg Barockorchester, a Orquestra do Século XVIII, a Filarmónica de Berlim, a Sinfónica de Baden‑Baden, a Sinfónica de Viena, a Orquestra do Real Concertgebouw de Amesterdão, a Orquestra Nacional de Lyon ou a Orquestra de Paris.
O Coro Gulbenkian participou em importantes festivais internacionais, tais como: Festival Eurotop (Amesterdão), Festival Veneto (Pádua e Verona), City of London Festival, Hong Kong Arts Festival, Festival Internacional de Música de Macau, ou Festival d’Aix-en-Provence.
A discografia do Coro Gulbenkian está representada nas editoras Philips, Archiv / Deutsche Grammophon, Erato, Cascavelle, Musifrance, FNAC‑Music e Aria‑Music, tendo ao longo dos anos registado um repertório diversificado, com particular incidência na música portuguesa dos séculos XVI a XX. Algumas destas gravações receberam prestigiados prémios internacionais. Entre 1969 e 2020, Michel Corboz foi o Maestro Titular do Coro. Desde 2024, Inês Tavares Lopes é Maestra Adjunta e Jorge Matta consultor artístico.
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Orquestra Gulbenkian
Em 1962 a Fundação Calouste Gulbenkian decidiu estabelecer um agrupamento orquestral permanente. No início constituído apenas por doze elementos, foi originalmente designado por Orquestra de Câmara Gulbenkian. Ao longo de sessenta anos de atividade, a Orquestra Gulbenkian (denominação adotada desde 1971) foi sendo progressivamente alargada, contando hoje com um efetivo de cerca de sessenta instrumentistas, que pode ser expandido de acordo com as exigências de cada programa. Esta constituição permite à Orquestra Gulbenkian interpretar um amplo repertório, do Barroco até à música contemporânea. Obras pertencentes ao repertório corrente das grandes formações sinfónicas podem também ser interpretadas pela Orquestra Gulbenkian em versões mais próximas dos efetivos orquestrais para que foram originalmente concebidas, no que respeita ao equilíbrio da respetiva arquitetura sonora.
Em cada temporada, a Orquestra Gulbenkian realiza uma série regular de concertos no Grande Auditório, em Lisboa, em cujo âmbito colabora com os maiores nomes do mundo da música, nomeadamente maestros e solistas. Atua também com regularidade noutros palcos nacionais, cumprindo desta forma uma significativa função descentralizadora. No plano internacional, a Orquestra Gulbenkian foi ampliando gradualmente a sua atividade, tendo efetuado digressões na Europa, na Ásia, em África e nas Américas. No plano discográfico, o nome da Orquestra Gulbenkian encontra-se associado às editoras Philips, Deutsche Grammophon, Hyperion, Teldec, Erato, Adès, Nimbus, Lyrinx, Naïve e Pentatone, entre outras, tendo esta sua atividade sido distinguida, desde muito cedo, com diversos prémios internacionais de grande prestígio. O finlandês Hannu Lintu é o Maestro Titular da Orquestra Gulbenkian, sucedendo a Lorenzo Viotti.
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Hannu Lintu
Maestro Titular
O maestro finlandês Hannu Lintu é o atual Maestro Titular da Orquestra Gulbenkian. Em paralelo, prossegue o seu trajeto como Maestro Principal da Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia. Estas responsabilidades surgiram na sequência dos grandes sucessos obtidos na direção da Orquestra Gulbenkian, bem como na liderança de produções com a Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia. Na temporada 2023/24, foi anunciada uma futura parceria artística com a Orquestra Sinfónica de Lahti, com início no outono de 2025.
Os compromissos do maestro em 2024/25 incluem a sua estreia no Festival de Bergenz (Oedipe de Enesco), bem como regressos à Sinfónica de Chicago, à Sinfónica da BBC, à Sinfónica da Rádio Finlandesa, à Filarmónica de Londres, à Sinfónica de St. Louis e à Sinfónica de Oregon.
Nos últimos anos dirigiu, entre outras orquestras, a Filarmónica de Nova Iorque, a Filarmónica de Berlim, a Orquestra de Cleveland, a Sinfónica da Rádio da Baviera, a Orquestra Nacional da Radio France, a Sinfónica de Boston, a Sinfónica da Rádio Sueca, a Deutsches Symphonie-Orchester Berlin, a Radio Filharmonisch Orkest, a Sinfónica de Atlanta, a Orquestra do Konzerthaus de Berlim, a Orquestra de Câmara de Lausanne e a Sinfónica de Montreal, bem como solistas como Gil Shaham, Kirill Gerstein, Daniil Trifonov ou Sergei Babayan.
Para além das grandes obras sinfónicas, dirige regularmente repertório de ópera. Neste domínio, os destaques recentes incluem O Navio Fantasma de Wagner, na Ópera de Paris, e Pelléas et Mélisande de Debussy, na Ópera Estadual da Baviera, bem como várias produções para a Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia, incluindo o ciclo O Anel do Nibelungo de Wagner, Dialogues des Carmélites de Poulenc, Don Giovanni de Mozart, Turandot de Puccini, Salome de R. Strauss, Billy Budd de Britten, e uma versão coreografada da Messa da Requiem de Verdi.
Hannu Lintu gravou para as editoras Ondine, Bis, Naxos, Avie e Hyperion. Recebeu vários prémios, incluindo dois ICMA para os Concertos para Violino de Béla Bartók, com Christian Tetzlaff, e para a gravação de obras de Sibelius, com Anne Sofie von Otter. Estas duas gravações, bem como Kaivos, de E. Rautavaara e os Concertos para Violino de Sibelius e de T. Adès, com Augustin Hadelich e a Royal Liverpool Orchestra, foram nomeados para os prémios Gramophone e Grammy.
Hannu Lintu estudou violoncelo e piano na Academia Sibelius, em Helsínquia, instituição onde mais tarde se formou em direção de orquestra com Jorma Panula. Estudou também com Myung-Whun Chung na Accademia Musicale Chigiana, em Siena. Em 1994 venceu o Concurso Nórdico de Direção de Orquestra, em Bergen.
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Tuuli Takala
Soprano
Tuuli Takala nasceu em Helsínquia, cidade onde estudou canto e violino na Academia Sibelius. Estreou-se profissionalmente em 2013 na Ópera Nacional Finlandesa, no papel de Rainha da Noite, em A flauta mágica de Mozart. Desde 2015, é membro da Semperoper Dresden, onde interpretou Lucia (Lucia di Lammermoor), Gilda (Rigoletto), Micaëla (Carmen), Sophie (Der Rosenkavalier), Blonde (O rapto do serralho), Marzelline (Fidelio), Rainha da Noite e Pamina (A flauta mágica), Pássaro da Floresta (Siegfried), Olympia (Les contes d’Hoffmann), La Contessa di Folleville (Il viaggio a Reims), Echo (Ariadne auf Naxos) e Valencienne (A viúva alegre).
Na temporada 2023-24, na Semperoper Dresden, assinala-se a estreia-se no papel de Adina (L’elisir d’amore), bem como o papel de Teresa numa nova produção de Benvenuto Cellini de Berlioz. Outros destaques incluem Mimì (La bohème), na Opéra-Théâtre de Metz Métropole, Blanche (Dialogues des Carmélites), na Ópera Nacional Finlandesa, e o papel principal de Lucia di Lammermoor, na Ópera de Hamburgo.
Em 2021, Tuuli Takala estreou-se no Festival de Bayreuth (Parsifal), tendo regressado em 2022 (Tannhäuser). Outros convites incluíram o Festival de Ópera de Savonlinna, a Royal Opera House - Covent Garden, a Volksoper Wien, o Aalto Theater Essen e a Ópera de Toulon, entre outros prestigiosos palcos.
Tuuli Takala recebeu primeiros prémios nos concursos de canto Timo Mustakallio e Kangasniemi, na Finlândia (2013). Foi também premiada no Concurso Belvedere (Amesterdão, 2015) e recebeu o Prémio Arnold Schönberg do Concurso Hilde Zadek (Viena, 2013). Em 2018 a Semperoper Dresden atribuiu-lhe o Curt Taucher Förderpreis.
Na temporada 2022-23, Tuuli Takala cantou, em concerto, a 9.ª Sinfonia de Beethoven, com a Filarmónica da BBC e a maestra Eva Ollikainen, e na estreia mundial do novo ciclo Songs of Meena, de Olli Kortekangas, com a Filarmónica de Helsínquia e Osmo Vänskä. Interpretou também Carmina Burana de Orff, com a Sinfónica de Lahti e Dalia Stasevska, e a 8.ª Sinfonia de Mahler, com a NDR Radiophilharmonie e Ingo Metzmacher, no Festival de Hanôver.
O seu extenso repertório de concerto inclui ainda Exsultate jubilate, o Requiem, e a Missa em Dó menor de Mozart, Um Requiem Alemão de Brahms, o Messias de Händel, o Gloria de Poulenc, a Petite messe solennelle de Rossini, as Paixões, a Missa em Si menor e a Oratória de Natal de J. S. Bach. Tuuli Takala é também uma dedicada intérprete de canção de câmara, tendo-se apresentado em recitais em muitos palcos na Finlândia, bem como em Londres, Viena e Tóquio, entre outras cidades.
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Wiebke Lehmkuhl
Contralto
Wiebke Lehmkuhl é natural de Oldenburg, na Alemanha. Estudou na Hochschule für Musik und Theater, em Hamburgo, e integrou a companhia da Ópera de Zurique. Em 2012 estreou-se no Festival de Salzburgo, sob a direção de Nikolaus Harnoncourt. O seu repertório wagneriano inclui Os mestres cantores de Nuremberga, O Anel do Nibelungo e Parsifal, tendo-se apresentado em récitas no Festival de Primavera de Tóquio, na Royal Opera House - Covent Garden, na Ópera de Paris, no Festival de Bayreuth, na Ópera da Bastilha (Paris), na Ópera da Baviera (Munique) e nos festivais de Schleswig-Holstein, Rheingau e Lucerna, entre outros prestigiosos palcos. A sua versatilidade permite-lhe abordar um repertório diversificado, desde Monteverdi a Mahler, sendo uma cantora muito solicitada a nível internacional.
Como solista de concerto, colaborou com orquestras como a Filarmónica de Berlim, a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig, a Orquestra do Tonhalle de Zurique ou a Sinfónica de Bamberg, em palcos como a Elbphilharmonie de Hamburgo, o Musikverein de Viena e os festivais de Lucerna e Schleswig-Holstein. Trabalha regularmente com maestros de renome como Petrenko, Mäkelä, Chailly, Gatti, Harding, Minkowski ou Nagano.
O repertório de Wiebke Lehmkuhl inclui ainda, entre outras obras, as Paixões e a Oratória de Natal de J. S. Bach, o Requiem de Mozart, as Sinfonias n.º 2 e n.º 3 e A Canção da Terra de Mahler, o ciclo Gurrelieder de Schönberg, Elias de Mendelssohn e os Wesendonck-Lieder de Wagner.
Na presente temporada, interpreta Erda (O Ouro do Reno de Wagner), o seu papel de assinatura, na Royal Opera House, sob a direção de Antonio Pappano, e Cornelia (Giuliuo Cesare de Händel) na Ópera Nacional de Paris. Destaque ainda para os Rückert-Lieder de Mahler, em Valência, a 9.ª Sinfonia e a Missa Solemnis de Beethoven, respetivamente no Scala de Milão, com o maestro Riccardo Chailly, e no Auditório Nacional de Música de Madrid, com David Afkham.
Wiebke Lehmkuhl colaborou em numerosas gravações, incluindo a Oratória de Natal de J. S. Bach, com a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig e Riccardo Chailly (Decca), e o Magnificat de C. P. E. Bach, com o RIAS Kammerchor e a Akademie für Alte Musik Berlin, sob a direção de Hans-Christoph Rademann (Harmonia Mundi).
Programa
Gustav Mahler
Sinfonia n.º 2, em Dó menor, Ressurreição
1. Allegro maestoso
2. Andante moderato
3. In ruhig fließender Bewegung (Andamento tranquilo e fluido)
4. Urlicht: Sehr feierlich, aber schlicht (Luz primordial: Muito solene, mas simples)
5. Im Tempo des Scherzos (No tempo de um Scherzo)