Chostakovitch: Sinfonia n.º 5
Orquestra Gulbenkian / Hannu Lintu
As relações de Dmitri Chostakovitch com as autoridades estalinistas não foram pacíficas. Contudo, encontravam-se eivadas de ambiguidade de parte a parte. Por um lado, o compositor era acusado de formalismo, uma cedência ao espírito burguês cosmopolita em detrimento do esforço patriótico e revolucionário soviético. Por outro lado, algumas das suas obras foram apresentadas como modelares pelo poder instituído. A partir do final da década de 1920, Chostakovitch sofreu vários ataques dos defensores da ideia que a música deveria estar ao serviço da revolução e ser compreendida pela população em geral. Esse modelo considerava que as artes deveriam fomentar o patriotismo e glorificar o socialismo, misturando a linguagem artística do final do Romantismo, baseada na tradição musical russa, com temáticas soviéticas. Dessa forma, as linguagens modernistas e a música popular encontravam-se fora dos cânones promovidos pelas agremiações artísticas do território. Assim, o poema sinfónico e a sinfonia programática ocuparam um lugar importante nesse movimento. Curiosamente, as críticas a Chostakovitch foram mais intensas no que toca à ópera, nomeadamente em relação a O nariz e a Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk. Uma das apresentações da última, quando esta já gozava de algum sucesso na União Soviética e no estrangeiro, suscitou um violento ataque no Pravda. Essa denúncia pública trouxe problemas de ordem vária ao compositor, resultando no cancelamento da estreia da Sinfonia n.º 4. Assim, a Sinfonia n.º 5 foi uma oportunidade de reconciliar o compositor com as autoridades, apesar do distanciamento irónico.
A Sinfonia n.º 5 foi estreada pela Orquestra Filarmónica de Leninegrado, sob a direção de Yevgeny Mravinsky, a 21 de novembro de 1937. Foi muito aplaudida, apontando para a aproximação do compositor aos modelos realistas socialistas. Contudo, o processo foi mais complexo e a sua ambivalência evoca a angústia resultante das perseguições estalinistas. A sinfonia condensa o estilo rapsódico de Chostakovitch, fortemente influenciado pelas tradições orquestrais do Romantismo tardio. Assim, o espectro de Mahler, com as suas marchas e distorções angulares assombra muitos momentos da obra.
O primeiro andamento encontra-se numa forma allegro de sonata, como esta era compreendida na primeira metade do século XX. Permeados pelo pathos, os temas angulares e os ritmos pontuados que remetem para o Barroco são interpolados por marchas e fanfarras, num estilo heroico evocativo de Beethoven e Mahler. O lirismo de uma longa melodia é interpolado nesses elementos, nos quais a orquestração desempenha um papel essencial. Uma citação da Carmen de Bizet emerge, preparando a reexposição dos temas, desta vez na ordem inversa da exposição.
O segundo andamento encontra-se numa forma tripartida. A primeira secção baseia-se na estilização de uma dança popular ternária, o Ländler, muito cultivada na Áustria e precursora da valsa. Remetendo para as técnicas mahlerianas de citação, Chostakovitch enfatiza o grotesco através da distorção dos temas de sabor popular, transformando-os em momentos dissonantes. A secção intermédia é iniciada com um solo de violino de caráter lúdico, mas a textura rapidamente se adensa com o recurso aos vários naipes da orquestra. Aqui, a ornamentação reforça a jocosidade do momento, intensificada pelo recurso a fanfarras. Desta forma, o compositor homenageia o sinfonismo do final do Romantismo através de um recurso estilístico omnipresente na música promovida pelo regime estalinista. Esse recurso a topoi polissémicos foi central para o sucesso da obra aquando da sua estreia. O retorno do Ländler prepara o Largo, de carácter lírico e contemplativo, cujo estatismo é ocasionalmente submerso pelos solos dos sopros. As longas melodias de resolução diferida reforçam a intensidade expressiva deste andamento lento.
Uma marcha introduz o final da sinfonia, um Allegro non troppo que recorre a diversas citações musicais de Berlioz, de Bizet, de Richard Strauss e do próprio Chostakovitch. Neste andamento tempestuoso, os instrumentos de sopro têm particular destaque, intensificando a massa sonora através de intervenções virtuosísticas. Após um interlúdio lírico protagonizado pelas cordas, regressa a textura de marcha, que se vai adensando e tornando mais sonora até ao clímax final. Chostakovitch coloca o ouvinte entre a denúncia e a propaganda, entre a violência e a reconciliação, entre a alegria genuína e o triunfo forçado.
Intérpretes
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Orquestra Gulbenkian
Em 1962 a Fundação Calouste Gulbenkian decidiu estabelecer um agrupamento orquestral permanente. No início constituído apenas por doze elementos, foi originalmente designado por Orquestra de Câmara Gulbenkian. Ao longo de sessenta anos de atividade, a Orquestra Gulbenkian (denominação adotada desde 1971) foi sendo progressivamente alargada, contando hoje com um efetivo de cerca de sessenta instrumentistas, que pode ser expandido de acordo com as exigências de cada programa. Esta constituição permite à Orquestra Gulbenkian interpretar um amplo repertório, do Barroco até à música contemporânea. Obras pertencentes ao repertório corrente das grandes formações sinfónicas podem também ser interpretadas pela Orquestra Gulbenkian em versões mais próximas dos efetivos orquestrais para que foram originalmente concebidas, no que respeita ao equilíbrio da respetiva arquitetura sonora.
Em cada temporada, a Orquestra Gulbenkian realiza uma série regular de concertos no Grande Auditório, em Lisboa, em cujo âmbito colabora com os maiores nomes do mundo da música, nomeadamente maestros e solistas. Atua também com regularidade noutros palcos nacionais, cumprindo desta forma uma significativa função descentralizadora. No plano internacional, a Orquestra Gulbenkian foi ampliando gradualmente a sua atividade, tendo efetuado digressões na Europa, na Ásia, em África e nas Américas. No plano discográfico, o nome da Orquestra Gulbenkian encontra-se associado às editoras Philips, Deutsche Grammophon, Hyperion, Teldec, Erato, Adès, Nimbus, Lyrinx, Naïve e Pentatone, entre outras, tendo esta sua atividade sido distinguida, desde muito cedo, com diversos prémios internacionais de grande prestígio. O finlandês Hannu Lintu é o Maestro Titular da Orquestra Gulbenkian, sucedendo a Lorenzo Viotti.
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Hannu Lintu
Maestro Titular
O maestro finlandês Hannu Lintu é o atual Maestro Titular da Orquestra Gulbenkian. Em paralelo, prossegue o seu trajeto como Maestro Principal da Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia. Estas responsabilidades surgiram na sequência dos grandes sucessos obtidos na direção da Orquestra Gulbenkian, bem como na liderança de produções com a Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia. Na temporada 2023/24, foi anunciada uma futura parceria artística com a Orquestra Sinfónica de Lahti, com início no outono de 2025.
Os compromissos do maestro em 2024/25 incluem a sua estreia no Festival de Bergenz (Oedipe de Enesco), bem como regressos à Sinfónica de Chicago, à Sinfónica da BBC, à Sinfónica da Rádio Finlandesa, à Filarmónica de Londres, à Sinfónica de St. Louis e à Sinfónica de Oregon.
Nos últimos anos dirigiu, entre outras orquestras, a Filarmónica de Nova Iorque, a Filarmónica de Berlim, a Orquestra de Cleveland, a Sinfónica da Rádio da Baviera, a Orquestra Nacional da Radio France, a Sinfónica de Boston, a Sinfónica da Rádio Sueca, a Deutsches Symphonie-Orchester Berlin, a Radio Filharmonisch Orkest, a Sinfónica de Atlanta, a Orquestra do Konzerthaus de Berlim, a Orquestra de Câmara de Lausanne e a Sinfónica de Montreal, bem como solistas como Gil Shaham, Kirill Gerstein, Daniil Trifonov ou Sergei Babayan.
Para além das grandes obras sinfónicas, dirige regularmente repertório de ópera. Neste domínio, os destaques recentes incluem O Navio Fantasma de Wagner, na Ópera de Paris, e Pelléas et Mélisande de Debussy, na Ópera Estadual da Baviera, bem como várias produções para a Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia, incluindo o ciclo O Anel do Nibelungo de Wagner, Dialogues des Carmélites de Poulenc, Don Giovanni de Mozart, Turandot de Puccini, Salome de R. Strauss, Billy Budd de Britten, e uma versão coreografada da Messa da Requiem de Verdi.
Hannu Lintu gravou para as editoras Ondine, Bis, Naxos, Avie e Hyperion. Recebeu vários prémios, incluindo dois ICMA para os Concertos para Violino de Béla Bartók, com Christian Tetzlaff, e para a gravação de obras de Sibelius, com Anne Sofie von Otter. Estas duas gravações, bem como Kaivos, de E. Rautavaara e os Concertos para Violino de Sibelius e de T. Adès, com Augustin Hadelich e a Royal Liverpool Orchestra, foram nomeados para os prémios Gramophone e Grammy.
Hannu Lintu estudou violoncelo e piano na Academia Sibelius, em Helsínquia, instituição onde mais tarde se formou em direção de orquestra com Jorma Panula. Estudou também com Myung-Whun Chung na Accademia Musicale Chigiana, em Siena. Em 1994 venceu o Concurso Nórdico de Direção de Orquestra, em Bergen.
Programa
Dmitri Chostakovitch
Sinfonia n.º 5, em Ré menor, op. 47
1. Moderato – Allegro non troppo
2. Allegretto
3. Largo
4. Allegro non troppo