Beethoven: Sinfonia n.º 3
Orquestra Gulbenkian / Nuno Coelho
Há oito anos, a BBC Music Magazine realizou um inquérito junto de 151 maestros de todo o mundo e o veredicto sobre “a melhor sinfonia de todos os tempos” recaiu sobre a 3.ª de Beethoven. Claro que ajuda sempre ter a caução de especialistas, mas cremos que, conhecendo razoavelmente a história da música sinfónica ocidental e escutando esta obra com atenção, se trata na verdade de uma conclusão bastante óbvia. Nenhuma obra como esta faz uma “separação de águas” tão clara (o antes e o depois) e, em simultâneo, abre as portas a tudo quanto veio a seguir, ou seja, a grande sinfonia romântica. E como se não bastasse, ainda a rodeia todo um conjunto de histórias, ou lendas, à volta do seu epíteto de Heroica.
No que a recursos sonoros respeita, Beethoven não precisou de engrandecer o efetivo orquestral face às Sinfonias 1 e 2, exceto pela adição de uma simples 3.ª trompa1. E, ainda assim, operou uma verdadeira revolução do som orquestral – mas aí, pela escala a que concebeu os andamentos, pela escrita que destinou aos instrumentos e pelo conteúdo que infundiu na obra. Ou seja, Beethoven edificou na Heroica um verdadeiro “drama instrumental”, dotado da carga emocional e variedade expressiva de uma ópera, mas conduzido só e apenas pelas vozes dos instrumentos. Mais que só um salto musical, estamos perante um salto estético (e de categorização estética), donde os ecos/efeitos que esta obra teve não só sobre os compositores posteriores, como sobre pensadores e filósofos.
Em termos contextuais, esta sinfonia inscreve-se (como todas as suas sinfonias, exceto a 9.ª) no período de guerra quase contínua em que se viu a Europa entre 1792 e 1815, efeito da Revolução Francesa e do expansionismo napoleónico. Curiosamente, os primeiros esboços da Sinfonia datam do interregno mais alargado nesses 23 anos: os 14 meses que mediaram entre a Paz de Amiens (março de 1802) e a formação da 3.ª Coligação contra Napoleão (maio de 1803) – maio de 1803 é aliás a data provável para o início do efetivo trabalho de composição da Sinfonia, que se terá prolongado até outubro desse ano2. O mais tardar no início de 1804, a sinfonia estaria na sua redação definitiva.
Pouco antes da primeira execução absoluta da obra3, espécie de trial performance, Beethoven terá recebido a notícia de que Napoleão era agora “Imperador dos Franceses” (18/5/1804), o que terá originado o célebre episódio, relatado por Ferdinand Ries4, do qual nunca saberemos destrinçar facto de fábula. Certo é que a cópia da partitura, datada “Agosto 1804”, com anotações e correções do punho do compositor5, tem no frontispício o muito célebre buraco, causado pelo vigoroso (violento?) apagar de uma palavra. E a palavra era “Bonaparte” – e, contudo, a mesma página tem, mais abaixo, a lápis, a inscrição “Geschrieben auf Bonaparte”, ou seja: “escrita para (ou ‘por mor de’) Bonaparte”.
De facto, entre a dedicação original da sinfonia ao então “Cônsul Vitalício” e a fórmula que hoje conhecemos (que surge na 1.ª edição) – Sinfonia Eroica. Composta per festeggiare il sovvenire di un grand’Uomo – decorreram apenas dois anos, mas durante este tempo muito tinha acontecido, a começar pela guerra entre a França e a Áustria (agosto a dezembro de 1805), que culminou com a ocupação de Viena pelos franceses (e a instalação de Napoleão no Palácio de Schönbrunn), a 13 de novembro, a estrondosa derrota austríaca em Austerlitz (2/12) e o Tratado de Preβburg (26/12) entre os dois países – imaginam-se as condições que a Áustria teve de acatar –, pós o qual Napoleão regressou a Paris e as suas tropas deixaram Viena. Seria, pois, virtualmente impossível fazer editar uma obra – para mais uma obra tão pública, quanto uma sinfonia – dedicada a Bonaparte na Viena de 1806. Em última análise, e extrapolando deste anónimo “grande homem”, a inscrição-dedicatória que ficou consagrada remete para um herói do espírito, idealista, imbuído de uma missão superior, iluminadora e libertadora. Porque nisso, mais que em qualquer pessoa concreta, cria Beethoven com toda a firmeza das suas convicções.
A Heroica foi primeiro editada em 1806 pelo Comptoir das Artes e Indústrias de Viena, no final de outubro de 1806 (só as partes orquestrais), com dedicatória ao príncipe Lobkowitz, seu mecenas. A primeira partitura completa aparece em Londres, na primavera de 1809 (sem autorização/conhecimento de Beethoven), mas teve pouco ou nenhum eco fora de Inglaterra, devido ao bloqueio6 que Napoleão impusera aos produtos ingleses. A 1.ª edição da partitura completa, autorizada (e supervisionada) pelo compositor, foi a de Simrock (1822).
1. permitindo uma escrita acórdica, ou de melodia sustentada, para essa secção, como sucede no Trio do Scherzo.
2. desse mês (dia 22) data uma carta de Ferdinand Ries, então aluno e assistente de Beethoven, ao editor Simrock, oferecendo-lhe o direito de impressão da obra.
3. a data que surge com mais frequência para essa estreia é 9 de junho, mas pode ter acontecido alguns dias ou (até) poucas semanas antes. Ocorreu no palácio vienense do príncipe Lobkowitz, que tinha adquirido junto de Beethoven o exclusivo de execução da obra por alguns meses. A orquestra reunida para o efeito contava 27 músicos. A sinfonia seria executada mais vezes nesse verão, nos castelos do príncipe na Boémia (Raudnitz e Eisenberg) e em janeiro de 1805, de novo em Viena, pelos menos duas vezes. Todas estas apresentações foram privadas. A estreia pública deu-se no Theater an der Wien, no Domingo de Ramos (7/4) de 1805, junto com uma sinfonia (na mesma tonalidade da Heroica) de Anton Eberl, que teve acolhimento mais favorável do público presente.
4. o relato surge primeiro nos seus Apontamentos biográficos sobre Ludwig van Beethoven, editados em Mainz, em 1838.
5. esse manuscrito está guardado na Sociedade dos Amigos da Música de Viena, desde 1870, e é a fonte primária principal da obra, pois o autógrafo perdeu-se.
6. o famoso Bloqueio Continental
Intérpretes
- Maestro
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Orquestra Gulbenkian
Em 1962 a Fundação Calouste Gulbenkian decidiu estabelecer um agrupamento orquestral permanente. No início constituído apenas por doze elementos, foi originalmente designado por Orquestra de Câmara Gulbenkian. Ao longo de sessenta anos de atividade, a Orquestra Gulbenkian (denominação adotada desde 1971) foi sendo progressivamente alargada, contando hoje com um efetivo de cerca de sessenta instrumentistas, que pode ser expandido de acordo com as exigências de cada programa. Esta constituição permite à Orquestra Gulbenkian interpretar um amplo repertório, do Barroco até à música contemporânea. Obras pertencentes ao repertório corrente das grandes formações sinfónicas podem também ser interpretadas pela Orquestra Gulbenkian em versões mais próximas dos efetivos orquestrais para que foram originalmente concebidas, no que respeita ao equilíbrio da respetiva arquitetura sonora.
Em cada temporada, a Orquestra Gulbenkian realiza uma série regular de concertos no Grande Auditório, em Lisboa, em cujo âmbito colabora com os maiores nomes do mundo da música, nomeadamente maestros e solistas. Atua também com regularidade noutros palcos nacionais, cumprindo desta forma uma significativa função descentralizadora. No plano internacional, a Orquestra Gulbenkian foi ampliando gradualmente a sua atividade, tendo efetuado digressões na Europa, na Ásia, em África e nas Américas. No plano discográfico, o nome da Orquestra Gulbenkian encontra-se associado às editoras Philips, Deutsche Grammophon, Hyperion, Teldec, Erato, Adès, Nimbus, Lyrinx, Naïve e Pentatone, entre outras, tendo esta sua atividade sido distinguida, desde muito cedo, com diversos prémios internacionais de grande prestígio. O finlandês Hannu Lintu é o Maestro Titular da Orquestra Gulbenkian, sucedendo a Lorenzo Viotti.
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Nuno Coelho
Guest Conductor
The 2022/23 season sees Nuno Coelho commence his Chief Conductor and Artistic Directorship of the Orquesta Sinfónica del Principado de Asturias. He also begins his fifth year as Guest Conductor of the Gulbenkian Orchestra with a production of José Saramago’s reimagining of Mozart’s Don Giovanni to mark the writer’s centenary. Highlights elsewhere include debuts with the Royal Concertgebouw Orchestra, Tampere Philharmonic and Sinfonieorchester St Gallen; returns to Antwerp Symphony and Orquesta Sinfónica de Tenerife; and a tour with the Joven Orquesta Nacional de España.
Last season saw Nuno debut with the Helsinki Philharmonic, Dresden Philharmonie, Staatsorchester Hannover, Orchestre Philharmonique du Luxembourg, Gavle Symphony, Malmö Symphony, Residentie Orkest, Orchestre philharmonique de Strasbourg and Orchestre National de Lille; and continue his relationships with the Orquesta Sinfonica de Galicia and Orquestra Simfónica de Barcelona. In March 2022 he conducted a semi-staged Così fan tutte at the Gulbenkian, adding to theatre credits which include productions of La traviata, Cavalleria rusticana, Rusalka, Das Tagebuch der Anne Frank and Seven Deadly Sins.
Nuno won First Prize at the 2017 Cadaqués International Conducting Competition and has since gone on to conduct the Royal Liverpool Philharmonic, BBC Philharmonic, Symphoniker Hamburg, Orquesta Sinfónica de Castilla y León, Noord Nederlands Orkest and Orchestra Teatro Regio Torino. He was a Los Angeles Philharmonic Dudamel Fellow between 2018-19 and stepped in for Bernard Haitink that same season to make his debut with the Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks.
Born in Porto, Nuno studied conducting at the Zürich University of the Arts with Johannes Schlaefli and won the Neeme Järvi Prize at the Gstaad Menuhin Festival. In 2015 he was admitted into the German Music Council’s Dirigentenforum and for the following two years he was both a Tanglewood Conducting Fellow and Assistant Conductor of the Netherlands Philharmonic. Literature and tennis occupy his time off-podium.
Programa
Ludwig van Beethoven
Sinfonia n.º 3, em Mi bemol maior, op. 55, Heroica
– Allegro con brio
– Marcia funebre: Adagio assai
– Scherzo: Allegro vivace
– Finale: Allegro molto