Beethoven: Sinfonia n.º 3

Orquestra Gulbenkian / Nuno Coelho

A Orquestra Gulbenkian interpreta a célebre Sinfonia Heroica de Ludwig van Beethoven, sob a direção do Maestro Nuno Coelho.
Bernardo Mariano 26 abr 2024 50 min

Há oito anos, a BBC Music Magazine realizou um inquérito junto de 151 maestros de todo o mundo e o veredicto sobre “a melhor sinfonia de todos os tempos” recaiu sobre a 3.ª de Beethoven. Claro que ajuda sempre ter a caução de especialistas, mas cremos que, conhecendo razoavelmente a história da música sinfónica ocidental e escutando esta obra com atenção, se trata na verdade de uma conclusão bastante óbvia. Nenhuma obra como esta faz uma “separação de águas” tão clara (o antes e o depois) e, em simultâneo, abre as portas a tudo quanto veio a seguir, ou seja, a grande sinfonia romântica. E como se não bastasse, ainda a rodeia todo um conjunto de histórias, ou lendas, à volta do seu epíteto de Heroica.

No que a recursos sonoros respeita, Beethoven não precisou de engrandecer o efetivo orquestral face às Sinfonias 1 e 2, exceto pela adição de uma simples 3.ª trompa1. E, ainda assim, operou uma verdadeira revolução do som orquestral – mas aí, pela escala a que concebeu os andamentos, pela escrita que destinou aos instrumentos e pelo conteúdo que infundiu na obra. Ou seja, Beethoven edificou na Heroica um verdadeiro “drama instrumental”, dotado da carga emocional e variedade expressiva de uma ópera, mas conduzido só e apenas pelas vozes dos instrumentos. Mais que só um salto musical, estamos perante um salto estético (e de categorização estética), donde os ecos/efeitos que esta obra teve não só sobre os compositores posteriores, como sobre pensadores e filósofos.

Em termos contextuais, esta sinfonia inscreve-se (como todas as suas sinfonias, exceto a 9.ª) no período de guerra quase contínua em que se viu a Europa entre 1792 e 1815, efeito da Revolução Francesa e do expansionismo napoleónico. Curiosamente, os primeiros esboços da Sinfonia datam do interregno mais alargado nesses 23 anos: os 14 meses que mediaram entre a Paz de Amiens (março de 1802) e a formação da 3.ª Coligação contra Napoleão (maio de 1803) – maio de 1803 é aliás a data provável para o início do efetivo trabalho de composição da Sinfonia, que se terá prolongado até outubro desse ano2. O mais tardar no início de 1804, a sinfonia estaria na sua redação definitiva.

Pouco antes da primeira execução absoluta da obra3, espécie de trial performance, Beethoven terá recebido a notícia de que Napoleão era agora “Imperador dos Franceses” (18/5/1804), o que terá originado o célebre episódio, relatado por Ferdinand Ries4, do qual nunca saberemos destrinçar facto de fábula. Certo é que a cópia da partitura, datada “Agosto 1804”, com anotações e correções do punho do compositor5, tem no frontispício o muito célebre buraco, causado pelo vigoroso (violento?) apagar de uma palavra. E a palavra era “Bonaparte” – e, contudo, a mesma página tem, mais abaixo, a lápis, a inscrição “Geschrieben auf Bonaparte”, ou seja: “escrita para (ou ‘por mor de’) Bonaparte”.

De facto, entre a dedicação original da sinfonia ao então “Cônsul Vitalício” e a fórmula que hoje conhecemos (que surge na 1.ª edição) – Sinfonia Eroica. Composta per festeggiare il sovvenire di un grand’Uomo – decorreram apenas dois anos, mas durante este tempo muito tinha acontecido, a começar pela guerra entre a França e a Áustria (agosto a dezembro de 1805), que culminou com a ocupação de Viena pelos franceses (e a instalação de Napoleão no Palácio de Schönbrunn), a 13 de novembro, a estrondosa derrota austríaca em Austerlitz (2/12) e o Tratado de Preβburg (26/12) entre os dois países – imaginam-se as condições que a Áustria teve de acatar –, pós o qual Napoleão regressou a Paris e as suas tropas deixaram Viena. Seria, pois, virtualmente impossível fazer editar uma obra – para mais uma obra tão pública, quanto uma sinfonia – dedicada a Bonaparte na Viena de 1806. Em última análise, e extrapolando deste anónimo “grande homem”, a inscrição-dedicatória que ficou consagrada remete para um herói do espírito, idealista, imbuído de uma missão superior, iluminadora e libertadora. Porque nisso, mais que em qualquer pessoa concreta, cria Beethoven com toda a firmeza das suas convicções.

A Heroica foi primeiro editada em 1806 pelo Comptoir das Artes e Indústrias de Viena, no final de outubro de 1806 (só as partes orquestrais), com dedicatória ao príncipe Lobkowitz, seu mecenas. A primeira partitura completa aparece em Londres, na primavera de 1809 (sem autorização/conhecimento de Beethoven), mas teve pouco ou nenhum eco fora de Inglaterra, devido ao bloqueio6 que Napoleão impusera aos produtos ingleses. A 1.ª edição da partitura completa, autorizada (e supervisionada) pelo compositor, foi a de Simrock (1822).

 

1. permitindo uma escrita acórdica, ou de melodia sustentada, para essa secção, como sucede no Trio do Scherzo.
2. desse mês (dia 22) data uma carta de Ferdinand Ries, então aluno e assistente de Beethoven, ao editor Simrock, oferecendo-lhe o direito de impressão da obra.
3. a data que surge com mais frequência para essa estreia é 9 de junho, mas pode ter acontecido alguns dias ou (até) poucas semanas antes. Ocorreu no palácio vienense do príncipe Lobkowitz, que tinha adquirido junto de Beethoven o exclusivo de execução da obra por alguns meses. A orquestra reunida para o efeito contava 27 músicos. A sinfonia seria executada mais vezes nesse verão, nos castelos do príncipe na Boémia (Raudnitz e Eisenberg) e em janeiro de 1805, de novo em Viena, pelos menos duas vezes. Todas estas apresentações foram privadas. A estreia pública deu-se no Theater an der Wien, no Domingo de Ramos (7/4) de 1805, junto com uma sinfonia (na mesma tonalidade da Heroica) de Anton Eberl, que teve acolhimento mais favorável do público presente.
4. o relato surge primeiro nos seus Apontamentos biográficos sobre Ludwig van Beethoven, editados em Mainz, em 1838.
5. esse manuscrito está guardado na Sociedade dos Amigos da Música de Viena, desde 1870, e é a fonte primária principal da obra, pois o autógrafo perdeu-se.
6. o famoso Bloqueio Continental


Intérpretes

  • Maestro

Programa

Ludwig van Beethoven

Sinfonia n.º 3, em Mi bemol maior, op. 55, Heroica
– Allegro con brio
– Marcia funebre: Adagio assai
– Scherzo: Allegro vivace
– Finale: Allegro molto

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