Dias 11, países 7, jazzes muitos

30 jun 2016

No ano do 60º aniversário da Gulbenkian, o festival de jazz da fundação instalada na Avenida de Berna, em Lisboa, apresenta uma programação de luxo que inclui 14 concertos, duas conferências, três filmes e o lançamento de um livro. Entre as plurais abordagens a este género de música, estarão em foco influências do funk, do disco, do rock e da música contemporânea, pelo meio com alusões directas a Ornette Coleman, Sun Ra e John Coltrane.

Os números redondos têm virtudes e uma é o de funcionarem como metas. São pontos imaginários de chegada, criados pela nossa forma de lidar com o imprevisto, pois em teoria 59 e 61 são barreiras igualmente notáveis. Mas a chegada aos 60 anos da Fundação Calouste Gulbenkian terá insuflado um espírito celebrativo que contagiou a 33ª edição do Jazz em Agosto: 11 dias seguidos de música, 14 concertos, duas conferências, três filmes e o lançamento de um livro, com representação de sete países… O festival retoma o formato de há alguns anos, só que, em vez de viajar para o Bairro alto como então, fica nos jardins, com concertos às 21.30, por vezes antecedidos por conversas ou documentários às 18:30 com entrada gratuita.

Pode ser necessário seleccionar, mas dificilmente conseguiremos sobreviver com menos de três concertos. Aqui vão as sugestões…

 

A abertura cabe a Marc Ribot, que o programador da Gulbenkian, Rui Neves, já trouxe a Lisboa por várias vezes. Regressa desta feita com o grupo The Young Philadelphians, um projecto fundado em 2005 e que na altura se apresentou quase em estreia no FMM de Sines. Congelado até 2014, voltou a tocar para uma tournée no Japão e tem-se mantido em funcionamento. Abre o festival lisboeta depois de tocar em Newport, o que detona as classificações mais extremistas que alguma crítica teima em ainda apor ao JeA, classificando-o como um festival de vanguarda, ou experimental. Claramente não o é.

Os The Young Philadelphians chegam rotinados por dois meses de estrada. O grupo tem duas guitarras, com Ribot e Chris Cochrane (em substituição de Mary Halvorson), o baixo eléctrico de Jamaaladeen Tacuma e a bateria de Calvin Weston, ao qual se juntará uma secção de cordas - o Lisbon String Trio (que não tem qualquer relação com o Lisboa String Trio de José Peixoto, Carlos Barretto e Bernardo Couto – trata-se de um agrupamento de cordas constituído especialmente para o efeito).

É mais um projecto de Ribot, para explorar um determinado estilo ou corrente musical: neste caso o som do soul-funk de Philadelphia, caracterizado pelas suas melodias doces e pelos arranjos complexos de cordas e metais (muito diferentes dos de James Brown, que apenas fazem gingar o ritmo), e que veio estabelecer as bases para o desenvolvimento do disco sound. Nos espectáculos da digressão têm sido tocados clássicos do funk como "Do It Anyway You Wanna" dos People’s Choice, "The Hustle" de Van McCoy ou "TSOP", que foi popularizado pelos Dexy's Midnight Runners mas é um original de 1974 dos MFSB (Mother, Father, Sister, Brother). Uma inauguração Feel Tha Funk' Get Down with da Boogie.

Na tarde do dia seguinte, na Sala Polivalente, Marc Ribot acompanha a solo a projecção do filme "Shadows Choose Their Horrors ". Entrada gratuita e a possibilidade de ouvir o guitarrista no seu melhor enquadramento, a solo, com um som introspectivo, sujo e uma fluidez rústica.

À noite regressa o saxofonista Tim Berne com os Snakeoil, depois de um disco com excelente crítica editado pela ECM o ano passado. O grupo, que passou de quarteto a quinteto com a adição de uma guitarra, tem na composição de Berne a sua mais-valia. O saxofonista é capaz, como poucos, de encontrar um equilíbrio entre o que é escrito e o que é improvisado mantendo a música coesa, o ouvinte ligado a uma ideia sobre a estrutura global das peças e as suas ideias principais, e de explorar os recursos tímbricos da conjugação dos instrumentos.

No sábado, o jazz instala-se lentamente. Começa com uma conferência que se antecipa interessantíssima, protagonizada por dois conversantes: David Toop e Evan Parker. O saxofonista inglês é muito mais do que um instrumentista e tem um ouvido alargado e informado sobre as questões sociais, económicas e musicais que enformam a actualidade. Toop, que no passado foi uma referência com o livro "Ocean of Sound", por cruzar diversos mundos musicais sem necessariamente os hierarquizar, é o seu interlocutor. Decorrerá na Sala Polivalente e sem custos!

Ouvida a conversa, avançamos para a noite com o regresso do virtuoso Peter Evans, de quem vamos ficando a conhecer inúmeras facetas, pois tem sido presença assídua em Portugal. Desta vez vem em trio com os Pulverize the Sound, que incluem Tim Dahl (ligado a bandas noise e punk) no baixo eléctrico e Mike Pride na bateria. Improvisação com alguns pontos de contacto pré-estabelecidos, atitude roqueira e um som forte. O projecto de Evans regressa - e avança simultaneamente - aos primórdios da cena nova-iorquina dos anos 1990 (Zorn, Moss, Sharp, etc.), com uma abordagem crua e provocadora. A surpresa é, obviamente, o papel do trompete neste contexto.

O Domingo começa à tarde, igualmente conversante, com os mesmos interlocutores e no mesmo local, para a prosa em falta do dia anterior.

À noite sobe ao palco a  Eve Risser White Desert Orchestra e este é o concerto que eu não perderia se só pudesse ver um. Eve Risser foi a pianista da Orchestre Nacional de Jazz francesa e editou pela portuguesa Clean Feed um dos mais interessantes discos da década. Uma virtuosa nas técnicas de extensão do som do piano, consegue manter um discurso interessante, belo e ao mesmo tempo de um grau de dificuldade extraordinário. Um concerto a solo teria sido a minha preferência pessoal, mas o formato de pequena orquestra trará certamente motivos de sobra para a audição, com composições tecnicamente exigentes, “zapping” entre ideias, sons imprevistos e ideias musicais que estão em permanente pendência entre si. A música de Risser é caracterizada pelo detalhe e, em simultâneo, por um sentido global.

Com o passo estugado, o festival não dá descanso e apresenta o quarteto Tetterapadequ, um grupo luso-italiano com Gonçalo Almeida  no contrabaixo e João Lobo na bateria e  os italianos Daniele Martini  no saxofone  e Giovanni Di Domenico no piano. Uma presença merecida, pois Lobo tem-se afirmado como um dos bateristas mais interessantes da actualidade, com uma forma de tocar detalhada, que olha para a bateria não como um conjunto de tambores mas como um instrumento com infinitas capacidades. Também Gonçalo Almeida tem tido uma carreira internacional crescente. Será uma oportunidade interessante para conhecer melhor esta formação de nome indizível e pouco referida na Internet, num “blackout” de informação e divulgação infelizmente típico em tanta boa música portuguesa.

Se Eve Risser lidera o concerto imperdível deste ano, a Petite Moutarde será, provavelmente, o melhor segundo bilhete. O quarteto do violinista Théo Ceccaldi e da saxofonista Alexandra Grimal actua sonoramente sobre excertos de filmes surrealistas da década de 20 do século passado realizados por Marcel Duchamp, Man Ray e René Clair. Propõe uma música impaciente, em permanente mudança, tocada com rigor, timbricamente muito rica e que explora diversos ambientes e estados de espírito. Em disco é um jazz de enorme qualidade, o que faz antecipar um excelente concerto. Quem diria, franceses!

A quarta tem sessão à tarde (gratuita, relembre-se) com o filme "Off the Road", de Laurence Petit-Jouvet, que retrata a digressão norte-americana no ano de 2000 do contrabaixista Peter Kowald, descrito como «a free improvised road movie».

À noite, no anfiteatro ao ar livre, ouviremos o projecto Tuba and Drums Double Duo, em estreia absoluto. É um grupo português com o tubista Sérgio Carolino e os bateristas Mário Costa e Alexandre Frazão, ao qual se junta outra tuba, com o inglês Oren Marshall. Por ser uma estreia não há ainda registos gravados para audição pública, pelo que qualquer antecipação seria especulativa. Mas há uma referência: o que fizeram Carolino e Marshall com Marcus Rojas e Jay Rozen numa edição passada do mesmo Jazz em Agosto, sob a designação The Low Frequency Tuba Band.

O oitavo dia do festival iniciar-se-á também à tarde, gratuitamente, com a projecção de "Chicago Improvisations”, também de Laurence Petit-Jouvet, que capta os concertos de Peter Kowald na já referida tournée.

À noite sobe ao palco o grupo de Ava Mendoza, Unnatural Ways. É um trio de guitarra (Ava), baixo (Tim Dahl, o mesmo que toca no dia 6 com Peter Evans) e Sam Ospovat na bateria. Rock com improvisação e, provavelmente, a antecipação de alguns temas do álbum que está a ser preparado para a Tzadik de John Zorn. Será mais um contributo para sabermos da forma como a América está a tratar deste assunto (a incorporação do punk e do metal no jazz), dado que as principais referências que nos têm chegado neste campo são europeias (Elephant9, Spinifex, etc.). Música cheia de energia e cantada: espera-se que o Anfiteatro possa manter o som alto, pois é uma dimensão importante para ouvir este tipo de bandas, sabendo que nem sempre a mesma foi bem gerida no passado.

Fecha-se o ciclo de filmes da Rogue Art com “Electric Ascension Live at Guelph Jazz Festival 2012”, de John Rogers, com o Rova Saxophone Quartet a interpretar uma das obras fundamentais do jazz, "Ascension" de John Coltrane. Este projecto passou pelo Jazz em Agosto em 2006, mas quem o perdeu poderá ficar com uma ideia do que foi e quem esteve presente terá a possibilidade de o reviver.

À noite tocam os Z-Country Paradise, formado por músicos do centro da Europa. Mais jazz cantado e seguindo o ambiente instalado na véspera por Ava Mendoza, mas com uma perspectiva europeísta. Interessante a aposta da programação deste ano no mal designado por "jazz vocal", mostrando que este género não está embalsamado, apesar da profusão de taxidermistas. Jelena Kuljic canta textos de Rimbaud e de outros autores sobre uma base musical que evoca Captain Beefheart pelo facto de ter ritmos disciplinados e rebeldes simultaneamente e da instrumentação que os acentua e contradiz, criando temas bem estruturados mas surpreendentes. Bom ambiente sonoro, organizado, que poderá servir muito bem para criar novas perspectivas sobre um género que ficou cristalizado, na imagem da mulher fatal e langorosa a purgar as imprevisibilidades do amor.

O penúltimo dia do festival começa ligeiramente mais cedo, às 18h00, com o lançamento, pelo jornalista italiano Luca Vitali, do livro  "The Sound of the North – Norway and the European Jazz Scene".  A tardiné traz ainda um concerto gratuito do norueguês Paal Nilssen-Love, um dos mais importantes bateristas da actualidade. Imperdível.

O concerto da noite ficará a cargo dos Thomas de Pourquery Supersonic. O sexteto francês presta tributo a Sun Ra, genial teclista que passou em vida pelo Jazz em Agosto e algumas vezes em espírito. Pourquery, que canta e toca saxofone, faz uma versão pacificada, rítmica, europeizada e terrena da música do compositor e líder de orquestra. Há pouca informação audível sobre este novo projecto, pelo que ficamos curiosos.

O fecho acontece novamente com dose dupla. À tarde ouviremos Frank Gratkowski, o saxofonista dos Z- Country Paradise, a solo no pequeno auditório.

Se o orçamento só me permitisse libertar três bilhetes, era no último dia que aplicaria o terceiro: regressa Paal Nilssen-Love com a sua Large Unit, 13 músicos para uma música feroz, com dois bateristas, dois percussionistas e dois contrabaixistas a estremecer o ensemble, criando uma textura rítmica subterrânea sobre a qual os seis metais, a guitarra eléctrica e a electrónica tocam temas conciliadores. A música funciona ao contrário do que seria de esperar: é a secção rítmica que se move em excesso de velocidade, rebentando todos os pontos de qualquer carta jazzística, enquanto a frente de sopros entrega serenamente os temas.

A enorme densidade rítmica faz da música da Large Unit um caso raro e as boas ideias para os temas, bem como os bons solistas, constroem uma unidade musical de enorme prazer. Estranhamente (Noruega, grupo grande, excesso de baterias), a música tem uma espiritualidade coltraneana (evocando também Sanders, Tyner e Alice), constituindo uma releitura abstracta do modalismo concebido pelo saxofonista. O ideal para sair deste Jazz em Agosto em estado de flutuação.

 

Gonçalo Falcão

Jazz.pt – 30 Junho 2016

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