Um desencontro rotundo na Gulbenkian

Os Músicos do Tejo convidam Pedro Costa
04 abr 2016

Na inusitada prevalência de concertos cénicos e espectáculos audiovisuais característica da presente temporada da Gulbenkian, esta era uma das propostas mais intrigantes: a que propósito um agrupamento barroco solicitava um cineasta e um cineasta de universo tão particular na sua obstinação de olhar sobre imigrantes africanos?

O que de facto sucedeu, se viu e ouviu, não foi tanto Os Músicos do Tejo convidam Pedro Costa, mas sim Pedro Costa com Os Músicos do Tejo, tal a proeminência das peculiaridades e idiossincracias daquele.

Diga-se aliás que desde o anúncio da temporada e em relação ao que consta da brochura daquela houve alterações. As obras escutadas não foram só de Vivaldi, Monteverdi, Bach e Händel (do primeiro e do último nem sequer houve mesmo), mas também de outros autores barrocos, de anteriores, maneiristas (Marenzio, Lawes e Dowland), e de posteriores, Schubert, Eisler e o contemporâneo Kurtág, mais, de todo despropositadamente nesta sequência, uma canção de Gil Scott Heron, de quem Costa reivindica a influência desde a apresentação em Nova Iorque do seu último filme, Cavalo Dinheiro.

Por outro lado, e também contrariamente ao anunciado, as imagens não se focalizavam em Vitalina, que em Cavalo Dinheiro tem uma fulgurante aparação (é mesmo o termo), mas eram uma revisão/prossecução do cinema de Costa, começando com imagens da paisagem vulcânica na ilha do Fogo em Cabo Verde, como em Casa de Lava, passando por uma reaparecida Vanda e centrando-se depois, em grandes planos ou não, em rostos de africanos, com uma luz de brasas.

Mas houve dois aspectos desastrosos, o dispositivo cénico adoptado, inclusive nas suas condições ao nível das condições de realização, e o recurso a cantores africanos, numa espécie de proto-personagens, delineando um vago fio narrativo.

No dispositivo cénico, ao alto, o ecrã era demasiado pequeno, e no Um desencontro rotundo na Gulbenkian palco um muro separava a boca de cena, onde evoluíam os cantores e por vezes alguns músicos, por trás estando, quase em obscuridade, o agrupamento. É assaz provável que estas condições, deficientes, tenham contribuído para os recorrentes desajustamentos musicais, indignos de uma formação com as credenciais dos Músicos do Tejo. Mas o pior, péssimo, foram as vozes.

Excepto um Fernando Guimarães, incompreensivelmente irreconhecível, os restantes cantores eram africanos que, quaisquer que sejam as suas qualidades nos reportórios próprios (e Elizabeth Pinard mostrou mesmo um considerável aparato vocal em On Suicide de Eisler, só que cantado a modos de um espiritual negro), foram aqui, em obras de exigências muito diferentes, um completo desastre, e não é sequer admissível que Marcos Magalhães, director dos Músicos, não tenha a noção disso. Foi um sofrimento.

Mas as imagens de Costa são esplendorosas, e em particular muitos dos grandes planos são inesquecíveis. Os dois últimos planos, com um cão escanzelado e depois uma tumba, só com terra e uma cruz, enquanto se ouve On Suicide e a Sinfonia da Cantata Christ lag in Todesbanden de Bach, sugerem mesmo a sequência visual como um Officium.

Apesar de um tão rotundo desencontro entre a força das imagens e o palco e a música, a concretização apresentada não deixa de ser uma lástima, porque ainda assim se percebe que com apuramentos e mudanças o espectáculo podia ter outra qualidade. Mas também já se sabe, por exemplo, que pedir a Costa que os cantores sejam escolhidos pelos seus dotes e não por serem ou não africanos, é da ordem do impossível, tal a sua fixação ronda o fetichismo.

Resta, em qualquer caso, que seria assaz lamentável que este filme, ou sequência de imagens, se ficasse por uma efémera apresentação. Conhecida aliás a mutabilidade das imagens no trabalho de Costa, entre a sala escura do cinema e as instalações, não deixa de haver razões para aguardar.

 

Augusto M. Seabra

Público, 04 Abril 2016

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