Testamentos musicais

Orquestra Gulbenkian - A Canção da Terra, Mahler e a Sinfonia nº 7, Sibelius
19 jan 2016

A Sinfonia n.º 7, de Jean Sibelius, uma espécie de testamento musical do compositor finlandês, e a impressionante Canção da Terra, de Gustav Mahler, preencheram o último programa da Orquestra Gulbenkian, dirigido por Susanna Mälkki, maestrina convidada principal. Para além da riqueza do seu conteúdo musical e expressivo e de necessitarem de um grande efectivo orquestal, são duas obras fora do comum do ponto de vista da estrutura e da forma.

No caso de Sibelius, os diferentes andamentos que constituíram a génese da composição foram condensados num só, fundindo-se habilmente entre si à maneira de uma fantasia. Em Mahler temos uma obra para contralto (podendo eventualmente ser feita por um meio-soprano ou por um barítono) e tenor em seis andamentos, que é um misto de sinfonia e de ciclo de Lieder, constituindo, portanto, a união dos dois domínios de eleição do compositor.

Na sinfonia do seu compatriota Sibelius, estreada em 1924, Susanna Mälkki conseguiu obter uma apreciável coesão e equilíbrio da Orquestra Gulbenkian, reforçada com vários instrumentistas convidados, e gerir com precisão e subtileza as transições entre os múltiplos contrastes da obra que se encadeiam num todo fluente, desde os blocos mais compactos e estáticos às secções mais movimentadas. Trata-se de uma das mais conseguidas criações de Sibelius, que após esta obra não voltou a concretizar mais nenhuma sinfonia, tendo destruído a partitura da oitava.

Na segunda parte do concerto, a Canção da Terra, uma das obras mais emblemáticas de Mahler e um dos grandes desafios do repertório pós-romântico, teve uma interpretação um pouco mais irregular e uma prestação da Orquestra Gulbenkian por vezes menos apurada, principalmente no andamento inicial, não obstante vários momentos de grande beleza ao longo da obra e de delicadas intervenções solísticas (como o oboé em Testamentos musicais O Solitário no Outono ou as sedutoras combinações tímbricas das madeiras em Da Juventude).

Composta em 1908-9, a Canção da Terra parte de uma série de poemas chineses de Li Tai Po (publicados numa adaptação alemã por Hans Bethge) que reflectem a dimensão efémera da vida, mas também a sua constante renovação e o caminho para a eternidade. Os poemas, e a respectiva música, que Mahler atribuiu ao contralto são mais pungentes e introspectivos do que os que foram destinados ao tenor, mais explosivos e joviais, ainda que por vezes carregados de uma amarga ironia.

Também as interpretações dos cantores solistas que actuaram na Gulbenkian foram marcadamente contrastantes, não só pela natureza da música, mas pelo seu próprio perfil. O tenor Christian Elsner, inicialmente anunciado, foi substituído por Tom Randle, cujo timbre não é especialmente apelativo. Cantou com veemência, mas apostou sobretudo na dimensão mais agreste das canções atribuídas à voz de tenor, sobretudo na Canção de Beber da Tristeza da Terra e em O Bêbado na Primavera. Pelo contrário, Gerhild Romberger distinguiu-se pelo seu belo timbre e por uma voz firme e homogénea ao longo de toda a extensão. O seu canto é subtil e depurado e a sua expressividade sóbria e inteligente. No último andamento (A Despedida), o mais profundo de todos, a cantora não atingiu os imponderáveis e etéreos pianíssimos que a repetição da palavra “eternamente” no final solicita, como uma espécie de caminho para o infinito, mas em geral fez justiça à comovente e inquietante música de Mahler.

 

Cristina Fernandes

Público, 19 Janeiro 2016

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