Te Deum laudamus: louvor por música, antigo e moderno

02 jan 2017

Te Deum é um hino latino em prosa rítmica, datável do século quinto. De facto compõe-se de duas partes (um hino a Deus-Pai e outro a Deus-Filho, separados por uma invocação trinitária); a primeira parte é provavelmente mais antiga do que o conjunto do texto. Como expressão ritual de glorificação (“Deus, te louvamos”), o Te Deum destinava-se ao Dia do Senhor, o domingo, tendo ficado associado, no rito romano, ao final da hora de Matinas, que precedia o despontar do dia (celebrado nas Laudes que imediatamente se lhe seguiam).

Desde o século XV foi também usado em outros momentos enquanto Acção de Graças, tendo a sua melodia recebido tratamento distintivo, de carácter polifónico. Do Renascimento, contudo, chegaram-nos poucas composições polifónicas do Te Deum, possivelmente porque, para a sua solenização sonora, se recorria ordinariamente ao contraponto improvisado. Só com o Barroco viria o Te Deum a ser apropriado de forma mais sistemática pelos compositores para marcar ocasiões de especial importância para os seus patronos. Com o século XIX, o tratamento musical deste texto passou também a ser, de forma explícita, veículo de expressão pública da piedade do compositor, ou, em todo o caso, desafio técnico por este livremente aceite como intérprete da sensibilidade espiritual da Igreja.

No concerto em apreço, pudemos ouvir duas versões do Te Deum: uma de Marc-Antoine Charpentier (m. 1704), composto em 1692 para celebrar com pompa religiosa e social a vitória numa batalha; a outra de Arvo Pärt (n. 1935), para quem compor sobre este texto em 1984-1985 “foi a busca de algo evanescente, algo há muito perdido ou ainda não achado, a busca de algo que se acredita não ter existência concreta, mas tê-la tão real que existe não só dentro de nós mas também para além do nosso ser”. Duas circunstâncias e duas atitudes que fazem com que a primeira linguagem musical siga moldes convencionais e a segunda procure reinventar para o nosso tempo um outro modo comunicativo.

Embora não seja original a apresentação conjunta, em concerto, destas obras (o próprio Vaticano, no ano 2000, patrocinou essa aproximação), o facto é que essa opção é interessante na variedade que propõe ao público e nos desafios que lança aos cantores.

A obra de Charpentier é algo mais curta do que a de Pärt, mas o maestro Jorge Matta reequilibrou os pratos da balança recorrendo a duas pequenas peças instrumentais de Charpentier, o Second Air de Trompettes e a Marche de Triomphe.

A primeira foi executada pelos naipes de sopros, a abrir o concerto, no coro alto da Igreja de São Roque — uma decisão de belo efeito e que permitiu à peça de Pärt começar logo de seguida junto ao altar. Escrita para três coros (feminino, misto e masculino), piano preparado, orquestra de cordas e gravação processada de harpa de vento, a partitura foi revista primeiramente em 1992 e novamente em 2007.

Apresenta o texto sistematicamente duplicado (cabendo ao coro misto a replicação) com diferentes matizes de expressão, dentro de um lento hieratismo (que bebe, como em Stravinsky, na tradição ortodoxa) sublinhado pelas sonoridades graves em pedal.  O Coro e a Orquestra Gulbenkian foram intérpretes de grande competência, apesar de raras dessincronias nos ataques.

Seguiu-se o Te Deum de Charpentier, onde, não obstante as sonoridades convencionais (dos instrumentos modernos de orquestra, mas também da pronúncia italiana do latim) o estilo foi bem abordado, logrando reproduzir a vivacidade articulatória e, até certo ponto, a ornamentação do Barroco francês. O elenco de solistas (Eduarda Melo, soprano; Carolina Figueiredo, meio-soprano; Marco Alves dos Santos, tenor; e Tiago Matos, barítono) mostrou-se à altura do seu papel; apesar do louvável equilíbrio, destacou-se pela dificuldade do repto vocal e qualidade da resposta dada, o jovem Tiago Matos.

No seu todo, este concerto de fim-de-ano foi um sucesso artístico e de público; merecem ser aqui reconhecidos quer o arrojo do maestro Jorge Matta na concepção de programas inusitados, bem adaptados aos meios postos à sua disposição, quer a limpidez e consistência interpretativa invariavelmente conseguidas na sua montagem.

 

Manuel Pedro Ferreira

Público – 2 janeiro 2017

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