Suplício de Tântalo

L’Autre Hiver - Teatro Maria Matos
19 mar 2016

As perguntas a fazer são: o que é isto e a quem se destina? Para quê? O encenador canadiano Denis Marleau chama a “L’Autre Hiver” uma “ópera fantasmagórica”, mas o espetáculo é um produto onde uns trinta ou quarenta criativos (entre cenários, máscaras e esfinges, maquilhagem e cabelos, vídeo e montagem, instalação acústica, programação e gravação, etc.) meteram a colherada, numa forma hábil de diluição de responsabilidades (também corrente na ciência e na técnica). A produção tem o selo francófono (encomenda de Mons, Capital Europeia da Cultura em 2015), mas ocorreu-me a máxima anglo-saxónica: “too many cooks spoil the broth” (demasiados cozinheiros estragam o caldo).

O pretexto para estoutro inverno do nosso descontentamento é a relação entre os poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud. Mas há também a voz atormentada de uma criança, interferências cósmicas, personagens (?) videográficos sussurrando histórias de homens, mulheres e crianças, uma mãe universal, o canto do mar, 28 manequins esfíngicos, o silvo das sirenes e um revólver.

Que em Bruxelas Verlaine tenha atingido Rimbaud no pulso com uma pistola, e que em resultado deste incidente tenha sido preso em Mons, convertendo-se ao catolicismo terá tudo ou nada a Suplício de Tântalo ver com “L’Autre Hiver”. Quanto ao universo sonoro, temos uma orquestra de câmara (cordas, flautas, clarinetes e piano) de seis elementos, banda sonora previamente gravada (por exemplo, com o Coro feminino da Gulbenkian ou o Coro Infantil de la Monnaie), ondas acústicas computadorizadas (que dobram os instrumentos), amplificação e distorção (mesmo da voz humana). No meio desta amálgama sonora o texto do libreto de Normand Chaurette vai sendo projetado, mesmo quando ninguém canta ou fala. Não se percebe patavina, mas pouco importa.

Para tornar as coisas ainda mais complexas, Verlaine e Rimbaud são entregues a dois sopranos mascarados, que o compositor Dominique Pauwels abomina o género e “tenta ultrapassar a noção de personagem”.

Dizem que a ação ou o que se lhe pode chamar se situa na ponte de um navio errante (fantasma, como o de Wagner?) no Mar do Norte gelado. Enquanto os poetas cantam, o manequim de uma criança desloca-se de cá para lá e viceversa naquilo que aparenta ser um barquito de papel. Sim, é verdade que Verlaine atravessou a Mancha com Rimbaud e ensinou francês a crianças inglesas. Há recordações oníricas de infância e os manequins com figurinos vagamente japoneses serão (ou não) os alunos britânicos de Verlaine. Só não discorro o que é que tudo isto acrescenta à música, ao nosso entendimento da vida e obra de Verlaine e Rimbaud ou à nossa maneira de pensar e sentir.

Passada quase hora e meia, não saí diferente do espetáculo; apenas entediado. Desconfio, porém, que limitações técnicas do palco do Maria Matos talvez tenham imposto restrições ao produto importado.

Admito que mesmo sem a muleta do texto projetado adivinharia o ambiente aquático da obra: identificaria a ponte do navio, o vídeo do mar encapelado, o concretismo dos sons marítimos.

Mas o que me vinha à ideia como espectador era o suplício de um Tântalo mergulhado em águas que baixavam sempre que queria matar a sede, enquanto os ramos da árvore subiam tornando os frutos cobiçados cada vez mais inacessíveis. Nos anos 1960 vi e ouvi ‘obras de arte total’ igualmente ocas e pretensiosas, mas onde isso já vai… O sonho de Verlaine revelar-se-ia um pesadelo.

No entanto, aplaudo a coragem da Gulbenkian-Música em importar “L’Autre Hiver”. Na cultura, a mais preciosa das liberdades é a de arriscar e falhar.

Há coisas interessantes na música vagamente espectral do flamengo Pauwels, compositor-residente do LOD muziektheater, o produtor do espetáculo (juntamente com le manège.mons e UBU compagnie de création), e o desempenho dos dois sopranos, Lieselot De Wilde (Rimbaud) e Marion Tassou (Verlaine) é heroicamente admirável, justificando plenamente a estrela da classificação. Infelizmente, o pífio, embora grátis, programa de sala omite as respetivas biografias. Umas dezenas (poucas) de espectadores assistiram à estreia. À saída, ouvi um arrumador a dizer: “tanto trabalho e tão poucas palmas”. Os manequins estavam bem vestidos, mas o rei ia nu.

 

Jorge Calado

Expresso, 19 Março 2016

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