O sublime não basta
O habitual aviso para desligar os telemóveis no início dos concertos foi feito desta vez, surpreendentemente, pelo próprio director do Serviço de Música da Gulbenkian, que apareceu antes do início, de microfone na mão. Ele explicou até como se pode tossir sem fazer muito barulho, provocando alguns risos na sala. E depois entendemos o sentido: o público deveria ajudar a tornar este concerto “memorável”. Instalado este ambiente de exigência e devoção, partimos para a Viagem de Inverno. Claro que as tosses foram abundantes e telemóveis tocaram durante a actuação de Matthias Goerne e Markus Hinterhäuser. Nada a fazer…
Este espectáculo, uma produção do Festival de Aix-en-Provence, chegou a Lisboa como um must. E às vezes tanta expectativa torna as coisas um pouco artificiais. Tem de ser grande, tem de ser sublime. Matthias Goerne e Markus Hinterhäuser são de facto excepcionais. Conseguiram percorrer toda a Viagem numa ligação extraordinária entre ambos. Cumplicidade máxima, sem deslocamentos. Goerne consegue coisas incríveis: percorre registos vocais diferentes como se fosse um só e conhece as canções como se fossem suas. Tudo parece orgânico e “natural”, como se fosse expressão directa, uma só linha, uma só música. Por vezes parece suavizar até de mais as suas entradas, prejudicando até ataques vocais violentos em favor da unidade: da frase, da canção, de todo o ciclo. Se for preciso, sussurra, para não magoar nenhuma frase musical. Mas e a palavra, para onde vai?
O pianista nunca se afasta, acompanha a viagem, não se sobrepõe nem arrisca nada que não saia da própria música. É como o tocador de realejo de que fala a última canção de Schubert: dedos enregelados, ninguém lhe presta atenção, e, contudo, sem ele não se fazia esta viagem.
Mas desta vez não eram só dois, era um trio: uma projecção vídeo centrada no desenho, com técnicas da animação, propunha um afastamento, uma deslocação para uma outra viagem. Longe da neve, viajamos para memórias e sonhos de Joanesburgo, a terra natal do artista plástico William Kentridge. Projecção de memórias pessoais, e uma ligação subjectiva e muito livre com a música, embora siga ainda o ciclo canção a canção. Kentridge guarda algumas imagens (a árvore, a neve, o pássaro), mas sobretudo arrisca uma relação com Winterreise “por ideias” (tempestade, repouso, morte, ilusão, desilusão, coragem) e assim constrói uma projecção com a qual Goerne só raramente se relaciona, voltando-se ligeiramente e olhando as paredes. Com as tosses e os telemóveis (a sociedade actual, com as suas vozes engripadas e os seus instrumentos), a obra apresentada forma assim um estranho quarteto. Ou será um quinteto, alma minha?
No início do século XIX algo aconteceu à música: já não chegava a legitimidade de princípio, a racionalidade da função da arte ou a “parecença”. Nem basta a inspiração ou a imitação do sentir a música constrói um mundo que pressupõe um desacordo, uma estranheza. O que está ali feito e a sensação proposta não coincidem. As obras separam-se das suas funções, a música autonomiza-se. Por um lado, é o que Goerne e Hinterhäuser fizeram: a viagem toda dentro da música, por via da palavra musicada e do piano que canta. Isolando-a do mundo. Com a regra sagrada de nunca beliscar a música. Mas e a palavra, para onde foi?
O vídeo acrescentou uma camada a esta separação: já não está no terreno do representativo, mas da afirmação (legítima) de uma singularidade. Como se dissesse: esta obra é única não apenas na história da música, mas “para mim”. Uma imagem forte desse vídeo custa a sair da memória: um pássaro que, num desenho de luz rectangular, se atira contra as sombras. Nós também já não estamos na intimidade de Schubert, do cantor e do piano. Atiramo-nos contra as sombras e não vemos saída. Estamos à distância daquele sublime.
E assim ficámos nós, entre tosses e telemóveis (na nossa sociedade): à distância (como o narrador da sua Viagem de Inverno), embora possamos apreciar a genialidade dos intérpretes e até fazer em silêncio a nossa devoção à obra-prima. O amor perdido e vagabundo, o caminho a percorrer sem fim, o estrangeiro dentro de si mesmo, a errância sem norte porque “está demasiado frio para parar”, a memória de uma felicidade perdida. Nas duas canções finais, Goerne e Hinterhäuser foram sublimes, de facto. Mas porque ficou esta sensação gelada ainda nesta noite de Inverno? Não devia Schubert aquecer-nos, se não os pés, ao menos a alma? O sublime não chega, é preciso coragem “gegen Wind und Wetter”. Contra o vento e o tempo.
Pedro Boléo
Público, 22 Fevereiro 2016