Schubert: Winterreise

Matthias Goerne, Markus Hinterhäuser, William Kentridge, Sabine Theunissen - Gulbenkian, Lisboa, dia 19
27 fev 2016

Lembro-me bem da estreia de Matthias Goerne nos Encontros de Música da Casa de Mateus, em 1999. O cantor ainda não tinha vivido e sofrido o suficiente, mas estava na força da vida (tinha 32 anos) e no auge da beleza vocal: o seu “Winterreise” (Viagem de Inverno), com Eric Schneider ao piano, foi assombroso. Quase 17 anos volvidos, a voz perdeu homogeneidade e algum lustro. Defende-se carregando nos graves (ásperos) e/ou atacando as frases agudas em falsetto, mas com três gravações daquele que é o mais profundo ciclo de canções de Schubert (acompanhado por Johnson, Brendel e Eschenbach), Goerne continua a ser um dos mais lídimos intérpretes de “Winterreise”.

Regressou agora à Gulbenkian com uma versão animada por William Kentridge (com cenário de Sabine Theunissen, colaboradora do artista em óperas como “O Nariz” e “Lulu”). Noto que “Winterreise” tem sido pau para toda a colher: em 1997, Ian Bostridge filmou para o Channel 4 uma versão encenada por David Alden, com cinco atores-extra; em 2001 foi a vez de Bob Wilson iluminar e modelar Jessye Norman (com figurino de Yves Saint Laurent), e no ano seguinte coube a Simon Keenlyside cantar e dançar uma nova versão coreografada por Trisha Brown (Keenlyside é casado com uma bailarina). O problema de qualquer realização cénica é que “Winterreise” não é um ciclo narrativo; apenas a resposta invernosa e assombrada ao fim trágico de uma paixão. No final, o viandante arrasta-se por uma paisagem gelada, ao som repetitivo dessa figura mortuária que é o tocador de realejo.
Kentridge (cujo trabalho plástico e cinético muito admiro) quis contrapor aos 24 Lieder de Schubert outros tantos fragmentos de filmes e animações da sua lavra, para formar nas suas palavras um “trio com um pianista, um cantor e um projetor”.

Esqueceu-se do quarto elemento: o texto (poemas de Wilhelm Müller), esse, sim, indelevelmente ligado à música. Ao mergulhar a sala na escuridão sem recorrer aos sobretítulos, roubou ao público não-germânico a possibilidade de fruir esta obra-prima onde as palavras e o seu significado são tão importantes como as frases e as harmonias musicais. Por outro lado, a vista é o mais despótico dos sentidos o poeta Coleridge dixit. Distraído por constante animação no mural do cenário (uma colagem rauschenberguiana), o público presta pouca atenção ao casamento das notas do piano com a voz e o texto, revertendo perversamente do mundo sonoro ao mudo.

O exercício é aquilo a que Kentridge chama a “celebração da incompreensão” (do texto), mas o resultado total é bem menor do que a soma das partes. Também não senti que o desenho animado e o vídeo acrescentassem alguma mais-valia ao ciclo; pelo contrário. Kentridge trabalha com ecos da sua meninice: mapas de Joanesburgo, árvores e aves africanas, paisagens e objetos vangoghianos, rabiscos e ideias soltas, desfolhar de folhas (botânicas e literárias), etc. A chuva de orifícios dos cartões perfurados de uma pianola lembram as teclas do piano e tanto podem evocar uma chuva de lágrimas geladas (‘Gefrorne Tränen’) como as alucinações dos três sóis fantasmagóricos (‘Die Nebensonnen’).

O cemitério que é uma estalagem (‘Das Wirtshaus’) é pretexto para um caderno de óbitos. Há toques pessoais (Goerne a correr, o olho de Kentridge a piscar), e traços de cor. O último Lied, ‘Der Leiermann’ (O tocador de realejo), é acompanhado por uma procissão de figuras carregando engenhocas mecânicas até que tudo para e se apaga. Markus Hinterhäuser (diretor artístico do Festival de Salzburgo a partir de outubro) foi um pianista poético e muito atento aos maneirismos do cantor. Saúda-se a Gulbenkian-Música por continuar a arriscar em projetos inovadores.

 

Jorge Calado

Expresso, 27 Fevereiro 2016

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