Uma pianista carismática e um quarteto volúvel

10 out 2016

Há mais de uma década que Martha Argerich, figura maior da interpretação pianística, não se apresentava em Lisboa, pelo que a sua actuação na passada sexta-feira, na Fundação Gulbenkian, em parceria com o Quarteto Quiroga, suscitava as maiores expectativas, levando ao Grande Auditório uma assistência numerosa. Além do mais, as suas interpretações a solo ao vivo são muito raras, já que há muito tempo que a pianista argentina prefere partilhar o palco com amigos e colegas no âmbito da música de câmara. Foi também o que sucedeu em Lisboa, mas com o bónus da interpretação individual de uma obra lapidar da música para teclado a abrir o programa: a Partita n.º2, em dó menor, BWV 826, de J. S. Bach.

Logo desde os primeiros compassos da imponente “Sinfonia” que dá início à Partita n.º2, Martha Argerich mostrou a sua forte personalidade numa interpretação impetuosa da primeira secção (uma abertura à francesa, com os seus assertivos ritmos pontuados), para logo depois nos mostrar com requinte a luminosidade da inspirada melodia do Andante e um Allegro “fugato” pleno de vitalidade e com grande nitidez dos planos sonoros que compõe a sua escrita imitativa. Livre de preocupações historicistas, a sua abordagem revela uma musicalidade à-flor-da-pele, sem contudo deixar de ser atenta à coerência do discurso de Bach e à clareza polifónica das texturas.  A sua leitura ficou na memória também pelos acentuados contrastes de carácter que estabeleceu entre cada andamento: da serenidade e transparência da Allemande e da Sarabande à energia rítmica e ao brilhantismo do Rondeaux e do Capriccio.

Após esta prestação, que manteve o ouvinte sempre em estado de alerta, uma certa letargia dominou a interpretação do Quarteto de Cordas op. 51, nº1, de Brahms, pelo Quarteto Quiroga, jovem agrupamento espanhol que tem protagonizado uma ascendente carreira internacional e que teve o privilégio de partilhar a recente digressão ibéria de Martha Argerich. A contenção dinâmica e a homogeneidade na sonoridade do grupo, contribuíram para um certo distanciamento perante uma obra já de si algo sombria e austera.

Mas tudo mudou na segunda parte, quando Martha Argerich se uniu ao agrupamento numa obra tão empolgante como o Quinteto com Piano, em Mi bemol maior, op. 44, de Schumann, composição que na realidade é quase um concerto para piano, dada a proeminência deste instrumento e o virtuosismo que exige. Apesar da sintonia do conjunto nem sempre ter sido impecável e de ser desejável uma maior depuração expressiva no famoso segundo andamento (“In modo d’una marcia. Un poco largamente”), Martha Argerich contagiou com o seu carisma os seus colegas instrumentistas de cordas, os quais ganharam um renovado fulgor rítmico e dinâmico e passaram a evidenciar um mais nítido recorte de fraseados. Deixaram também sobressair a sua voz individual, com destaque para as intervenções do violoncelo e da viola no primeiro andamento. Todavia, quer pela própria concepção da partitura, quer pelo temperamento artístico da intérprete, o piano foi o protagonista, conduzindo a obra aos seus sucessivos clímaxes, incluindo o vertiginoso Scherzo, com as emblemáticas escalas velozes do primeiro tema, e o monumental e inventivo Allegro ma non tropo final, uma das criações mais notáveis de Schumann. O entusiasmo demostrado pelo público foi premiado com a repetição do Scherzo como “encore” numa versão ainda mais fulgurante.

 

Cristina Fernandes

Público – 10 outubro 2016

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