Os amores entre um pastor e uma ninfa do mar cantados na Gulbenkian

19 fev 2017

Encontraram-se os três pela primeira vez em palco no Natal de 2015, na Oratória de Natal de Bach, no CCB. Agora, o maestro argentino Garcia Alarcón (um especialista em música do século XVIII), o soprano Ana Quintans e o tenor Marco Alves dos Santos voltam a juntar-se, mas para algo completamente diferente: a masque ou serenata pastoral Acis and Galatea, em dois atos, de Händel. Ana e Marco frequentam repertórios muito diferentes: ela especializou-se em ópera e oratório dos séculos XVII e XVIII, com uma distinta carreira internacional; ele enveredou mais pelo repertório lírico, sobretudo italiano, do século XIX. A primeira vez que contracenaram juntos, lembra Marco, “foi nas Evil Machines de Luís Tinoco, com libreto de Terry Jones, no São Luiz [em 2008]. Agora, quer no Bach, quer no Händel, estamos mais na praia dela”. E reconhece que guarda boas recordações do último encontro: “Foi uma saudável revisitação do barroco e foi agradável— e até surpreendente— verificar que não perdi a ‘incrustação’ necessária aos níveis vocal e de estilo para fazer esse repertório.” Já sobre o maestro, considera-o “muito dinâmico e positivo e, como músico, é uma pessoa altamente cativante, inspiradora e motivadora. Tem uma abordagem sempre fresca da partitura e com ele nunca nada é aborrecido. Além disso, é muito simpático!” Em relação a Ana, e apesar dos interesses comuns, Garcia Alarcón não tem sido parceiro musical habitual “Ele já me convidou várias vezes para projetos com o grupo dele [Cappella Mediterranea] mas nunca foram avante, pois calhavam sempre em cima de outros convites que eram mais importantes para mim aceitar. Mas cantei com a mulher dele, o soprano Mariana Flores, no Egisto de Cavalli há cinco anos em Paris, e aí encontrámo-nos. Acis and Galatea, estreada em 1718, nos jardins do palácio do Conde de Carnarvon, perto de Londres, foi o primeiro texto dramático em inglês que Händel musicou e foi, em vida, a sua obra teatral mais popular. A história, retirada das Metamorfoses de Ovídio, conta os amores da nereida Galateia e do pastor Ácis, e de como Ácis, após ser morto pelo ciumento ciclope Polifemo, é transformado por Galateia numa nascente, daí gerando um rio. “É uma obra muito no espírito bucólico e pastoral, dai não ser muito rica em psicologia. A música e as personagens não desenvolvem muito, mas tem passagens muito bonitas”, comenta Ana, que destaca “a 2.a ária da minha personagem, As when the dove, que já conhecia bem antes de conhecer este papel”. Ainda assim, “a aparente simplicidade não é ‘preto-no-branco. Há que encontrar uma serenidade na interpretação, sem tensões na voz, uma estética lisa, fluida e em sintonia com o natural”. Nesse sentido, reconhece, “Polifemo é claramente o elemento mais dramático e é quem faz mover tudo aquilo”, referindo a propósito “uma ária dele, da versão primeira desta obra, em italiano [de 1708], de título Fra rombre e grorrori, um típico Lamento barroco, mas que é linda, linda, com uma linha vocal incrível!” Acrescenta: “Não sei se Händel a repescou para uma das outras versões [da década de 1730], mas ela devia ser sempre incluída” Já do seu Ácis, diz Marco ser “numa obra que é um exercício mais intimista, uma personagem curiosa, no sentido em que já não parece tipicamente barroco, antes aponta mais além e desbrava território, rumo ao período Galante e pré-clássico”. Indexa aí as duas árias que canta, destacando “a primeira ária [Love in her eyes sits playing],uma música maravilhosa!” Nas intervenções de Ácis, diz, “sinto um certo peso vocal e, uma vez que se vai fazer esta obra com componente cénica, acho que poderei acentuar esse lado”. Com isto, considera, irá de encontro ao “gosto performativo atual, que já não requer apenas vozes límpidas para cantar o barroco”. Numa obra que Marco classifica de “exercício mais intimista” e onde Ana identifica “um registo predominante de amenidade bucólica”, ambos coincidem no momento que consideram culminante: “Penso que está no dueto que depois se faz terceto [pela fatídica aparição de Polifemo). É onde a história ganha consequência dramática, criando um clima que levará à resolução de Galateia de transformar Ácis em fonte.” Marco é ainda mais cirúrgico: “Pode parecer estranho, mas é aquele breve recitativo do Ácis, mesmo antes de expirar. É o que mais me faz ficar com pele de galinha. É de uma simplicidade musical tremenda, mas é de um conteúdo rico e cheio.”

 

Bernardo Mariano

DN – 19 Fevereiro 2017

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