O mestre cantor

A estreia de Christian Gerhaher em Lisboa, cantando Schubert, Berlioz e Berg, é um acontecimento imperdível
11 mar 2017

Se me perguntassem qual é o acontecimento mais importante da temporada musical lisboeta, não hesitaria em responder que é a próxima vinda do barítono alemão Christian Gerhaher como solista em dois concertos da Gustav Mahler Jugendorchester na Gulbenkian (17 e 18 de março). Há hoje grandes cantores, mas Gerhaher é mais do que isso: é um cantor total, isto é, completo e perfeito. Explico-me: não lhe basta ter uma das mais apuradas, belas e versáteis vozes da atualidade, capaz de abordar todos os registos e dinâmicas com a maior naturalidade; põe-na também ao serviço de uma inteligência dominada pelos valores da língua em que canta. Para Gerhaher, cantar é “explorar a dialética entre a música e as palavras, mas os resultados são sempre pouco claros. Através da música procuro clarificar um mistério, e o que me leva a continuar a cantar é que isto nunca pode ser completamente explicado”. Na sua técnica, nada é forçado. As interpretações são honestamente reveladoras, sem truques ou artifícios de qualquer espécie. Tudo nele é profundamente humano e sincero, e não há traços de divismo. O milagre está em nos fazer acreditar que estamos a ouvir a música pela primeira vez (por muito conhecida que seja) ou em nos convencer que escolhas de repertório mais heterodoxas (como as dos concertos de Lisboa) são essenciais ao nosso bem-estar e saúde mental.

Por outras palavras: o seu canto afeta-nos tanto que saímos dos seus concertos pessoas diferentes (para melhor). “A voz mais comovente do mundo”, no dizer do crítico do “Daily Telegraph”. Christian Gerhaher é também um cantor completo, porque triunfa no Lied, concerto e ópera, em igual medida. É preciso recuar aos tempos de intérpretes como Kathleen Ferrier, Fritz Wunderlich ou Christa Ludwig para encontrar um cantor com um carisma vocal semelhante. Note-se que nenhum destes é barítono. A dedicação ao Lied associa-o a Dietrich Fischer-Dieskau ou, nos nossos dias, a Matthias Goerne. Tem a curiosidade do primeiro (sem os maneirismos) e a intensidade do segundo (mas enveredando por caminhos muito mais profundos e diversificados). Aliás, o cantor que lhe será mais próximo é o barítono sueco Peter Mattei. Na ópera, Gerhaher é também um cantor completo, com um repertório que atravessa a história da música vocal, do “L’Orfeo” (1607), de Monteverdi, a “Der Prinz von Homburg” (1960), de Henze, passando por Haydn, Mozart, Schubert, Wagner, Verdi, Debussy, Strauss, Berg, Orff, etc. A sua estreia em Covent Garden (Wolfram, em “Tannhäuser”), em 2010, valeu-lhe o Laurence Olivier Award para Desempenho Excecional em Ópera; em 2015 foi distinguido como o Melhor Cantor do Ano (International Opera Awards) e em 2016 pela revista “Opernwelt”.

Gerhaher é dos raros músicos que sabe escolher os seus colaboradores a dedo (e o maestro Daniel Harding, que dirige os seus concertos em Lisboa, é um deles). Quanto aos excessos dos encenadores e à moda da atualização dos enredos, diz simplesmente que na ópera “não é necessário erradicar a História”. Christian Gerhaher nasceu em 1969 em Straubing (Baviera), no seio de uma ilustre família de bancários sem grandes tradições melómanas. Na infância aprendeu a tocar vários instrumentos, mas foi só aos 16 anos, quando entrou para um coro, que descobriu o seu próprio instrumento – a voz. Na universidade estudou filosofia, antes de mudar para medicina (com a intenção de se especializar em psicologia). Continuou, porém, com as lições de canto, tanto mais que o seu melhor amigo, Gerold Huber (filho do seu antigo professor de violino), queria seguir uma carreira de pianista. Gerhaher chama-lhe o “fator musical mais importante da minha vida”. Quase 30 anos depois, Huber continua a ser o seu acompanhador exclusivo, a quem ama como à mulher e aos filhos (confissão sua). São uma espécie de gémeos siameses, com um a tratar da música e o outro das palavras.

A discografia conjunta já é longa e notabilíssima. O barítono frequentou ainda masterclasses de Fischer-Dieskau, Elisabeth Schwarzkopf e Inge Borkh que pouco lhe valeram. Aliás, Fischer-Dieskau apenas reconheceu o talento do aluno quando este, anos mais tarde, lhe ofereceu o seu primeiro disco – uma gravação do “Schwanengesang”, de Schubert. Diga-se, porém, que Gerhaher faltava muito às aulas de canto, porque punha o curso de medicina em primeiro lugar. Felizmente, o talento para a arte acabou por se impor à vocação científica. Quis ouvir as opiniões de Gerhaher sobre as obras que vai cantar em Lisboa, mas comigo na América e o artista na Alemanha, separados por meia dúzia de fusos horários, a comunicação tornou-se complicada. Valeu-me a generosidade do cantor, que se prontificou a responder rapidamente por e-mail às minhas perguntas. Aqui vão.

As óperas de Schubert são raramente produzidas no palco e quase nunca funcionam. O defeito será intrinsecamente dramático ou culpa do encenador? Gerhaher cantou e gravou “Alfonso und Estrella” (1822/54), com Harnoncourt (um dos seus mentores), e programou duas árias para Lisboa. Eis a resposta: “Nikolaus Harnoncourt chamou a esta obra uma espécie de drama da alma, no sentido de Ibsen e Tchekov. O curioso é que quase todos os personagens deste drama são pessoas boas e compreensíveis, de modo que havia que inventar um personagem ruim – Adolfo – para tornar tudo mais ‘interessante’. Mas na verdade é essa combinação de psicodrama detalhado e de longuras celestiais – na ausência de um enredo operático normal e direto – que torna esta obra difícil. Quem estará disposto a investir esforço e amor num projeto que não será facilmente estimado pelo público (mas que, por outro lado, poderia ser o terreno perfeito para um trabalho honesto e detalhado de produção)? Trata-se de uma extraordinária obra de arte de um compositor genial ainda à procura de um lugar especial no palco. Há, talvez, demasiados preconceitos sobre o que é um sucesso operático. Mas pelo menos esta música – e na minha opinião Schubert é o Verdi da língua alemã – é uma cornucópia de melodias, de leveza flutuante da linha vocal, de beleza singela da orquestração…” O contraste com os “Altenberg Lieder” (1913), de Alban Berg, no mesmo programa, não podia ser maior. Aqui temos cinco curtas canções (três das quais com menos de dois minutos), sobre textos de postais ilustrados de Peter Altenberg, que podem ser ouvidas como ‘mensagens telegráficas da alma’: as metáforas da Natureza, as profundezas e limites do Universo, a dilatação do tempo de espera, as lágrimas geladas da paz. Os meios? Uma combinação de elevada concentração orquestral com a mais elegante transparência. Efeito? A máxima comunicação no mínimo tempo. O barítono já as gravou na redução para piano, com Huber; canta-as agora com grande orquestra. “O que me atraiu foi precisamente essa combinação excecional de brevidade, humor, cor e pura massa [orquestral]. E não é fácil conseguir transmitir todas essas características em dez minutos.” A massa orquestral regressa (sem a transparência da obra de Berg) na II parte do concerto, com a “Sinfonia Nº 5”, de Bruckner. O desafio é outro em “Les Nuits d’été” (1856), de Berlioz, compostas para vários cantores mas em geral interpretadas por uma mulher (soprano ou mezzo). Anne Sofie von Otter, por exemplo, confessou que lhe desagradava cantá-las, porque requeriam vozes diferentes. “Acredito que há grupos especiais de Lieder, canções ou mélodies que requerem uma voz feminina (ou masculina), porque representam quase exclusivamente a psicologia de um dos sexos. É o caso do ‘Dichterliebe’ [Amor do Poeta, de Schumann], que pede um homem, ou das ‘Chansons de Bilitis’, de Debussy, que requerem uma mulher. Mas a maior parte dos ciclos de canções é uma espécie de mescla de ambos os géneros e podem ser cantados – segundo penso – tanto por uma mulher como por um homem. Julgo que ‘Les Nuits d’été’ é um bom exemplo desta segunda alternativa. A propósito, a mistura que refere na sua pergunta de vozes-personagens [em ‘Les Nuits d’été’] é – além da questão de género – um exemplo muito bom de uma das maiores características do canto de Lieder: não há aqui nenhum papel a representar no palco, porque isto não é o palco de um teatro, mas simplesmente uma plataforma lírica na qual os casos, pensamentos e momentos de gente comum são revividos de modo translúcido. A identidade do intérprete praticamente não conta (dentro dos limites que acima explicitei).” Este segundo concerto termina com a “Sinfonia Nº 2”, de Schumann – para Gerhaher, “o artista mais importante, porque ninguém sabe o que as suas canções verdadeiramente significam. Há algo de instável nelas […], qualquer coisa que transcende a música e as palavras – a expressão de uma ideia poética”. A minha última pergunta destinava-se ao cantor-intérprete com um treino e conhecimento em medicina e psicologia: como vê o papel da música nos tempos incertos e perigosos que atravessamos? “Respondo-lhe francamente: claro que gostaria de pensar que as artes podem influenciar ou mesmo decidir a história da Humanidade, tanto mais que existem há milhares de anos e conferem constantemente um significado à vida. Podem por isso incorporar uma espécie de coleção simbólica que representa a Humanidade. Além disto – e ao contrário do que sucede com qualquer arte decorativa ou de entretenimento -, vejo também um princípio importante na criação e performance de todas as artes: aspiração a um significado vital (que não tem de ser necessariamente uma manifestação de vida ou de morte), que implica o empenhamento total do artista. Mas depois surgem as dúvidas, como quando alguém afirma que uma pessoa que canta Lieder não pode ser cruel. Vem-me logo à mente a imagem do oficial alemão das SS no III Reich que tocava ardente e profundamente a música de Beethoven ou Bach antes ou depois de matar gente inocente sem pestanejar. Para ser mais concreto: acredito que é bom que os artistas chamem a atenção para os perigos crescentes de perda de liberdade, de racionalidade e de veracidade que alastram por todo o mundo. Por uma razão muito especial: eles fazem- -no com base numa literacia e não por interesses económicos. O único tipo de ‘lobismo’ que acho tolerável é a luta pela educação de todos, não o enriquecimento egoísta. É este o desiderato que, em minha opinião, todas as artes devem preencher.” Que ninguém se assuste com a presença das centenárias obras de Schoenberg e Berg nos programas – tão belas que fazem doer a alma de contentamento. Vocalmente, os dois concertos na Gulbenkian são bem diferenciados, mas com um artista destes é obrigatório escolher os dois. Que Christian Gerhaher volte depressa!

 

Jorge Calado

Expresso – 11 de março 2017

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