O melómano especulativo

Breves Notas sobre Música de Gonçalo M. Tavares - edição Relógio d’Água
27 fev 2016

Os textos de Gonçalo M. Tavares sobre música nasceram de um convite da Gulbenkian para assinalar os 50 anos da sua orquestra Este volume de prosas curtas de Gonçalo M. Tavares nasceu de uma proposta da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito das comemorações dos 50 anos da sua orquestra. Muitos dos textos, aliás, começaram por ver a luz em programas de concerto. E regressam a questões essenciais, já muitas vezes abordadas na história da cultura ocidental: O que é a música? O que a distingue das outras formas artísticas? Perguntas sujeitas aqui ao escrutínio de alguém que não reivindica a autoridade do especialista. Antes pelo contrário.

É justamente por olhar de fora para o fenómeno musical que GMT se pode dar ao luxo de um ponto de vista heterodoxo. Como se a música fosse um campo infinitamente aberto, à mercê da roda-viva de uma inteligência que arrisca pensar tudo, até o impensável.

O que mais impressiona, nestas deambulações de um melómano especulativo, é a extraordinária liberdade com que o autor urde uma teia conceptual em torno do seu objeto de estudo. GMT sugere taxonomias e classificações, desconstrói conceitos, testa hipóteses, arrisca teorias. Estamos O melómano especulativo no território das ideias puras, experimentais, muitas vezes saltos no vazio, sem rede, mas capazes de intuir, na trajetória de um voo incerto, aproximações a verdades que não seriam, talvez, discerníveis sem esse movimento de exploração às cegas. E se alguns dos caminhos trilhados vão dar a nenhures, ou acabam em becos sem saída, outros há que nos obrigam a pôr em causa a solidez dos nossos conhecimentos adquiridos.

“A música é, de certa forma, muda em termos de linguagem.” Para GMT, esta mudez, mais do que uma limitação, é um desafio.

Como apreender, com palavras, a intangibilidade da música? “Os sons não falam, existem como um elemento físico que aparece num instante e de imediato desaparece como uma pedra que existisse, ocupasse espaço e tivesse peso mas somente durante um microssegundo para logo a seguir desaparecer. Uma pedra efémera, eis o som; uma pedra momentânea, eis o som. E isso é estranho, claro.” As “breves notas” argutas, desenvoltas, lapidares representam um esforço para decifrar essa estranheza.

A materialidade imaterial da música é talvez o tema central das cogitações de GMT. Não podemos ‘tocar’ na música, mas ela ‘toca-nos’, mexe com os corpos, provoca-nos manifestações físicas.

Um “melómano-fisionomista”, por exemplo, seria capaz de identificar, de costas para a orquestra, qual o compositor que está a ser interpretado, só pelas alterações no rosto dos ouvintes, os esgares, um franzir de sobrancelhas.

“Ocupação sonora do rosto (em quem escuta): a tua cara foi ocupada pelos sons que ouve.” A música, nas suas infindáveis formas, nunca acaba. Mesmo depois do concerto, há espectadores que ficam ainda durante muito tempo na sala, “como que a recuperar de uma breve e fugaz doença; (…) como se fossem recoletores de sobressaltos, vibrações e ecos, quase secretos, que ainda prosseguem”.

 

José Mário Silva

Expresso, 27 Fevereiro 2016

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