A maior parte dos cantores sabe como cantar mas não o que dizer

Waltraud Meier, a notável cantora alemã regressa hoje à noite à Fundação Gulbenkian para interpretar dois emblemáticos ciclos de Gustav Mahler sobre poemas de Friedrich Rückert.
06 abr 2017

Após uma tocante interpretação dos Wesendonck Lieder, de Wagner, na última temporada Gulbenkian, a notável cantora alemã Waltraud Meier está de regresso a Lisboa para dar voz a outro dos seus compositores de eleição: Gustav Mahler. Hoje (21h) interpretará no grande auditório os emblemáticos ciclos Kindertotenlieder e Rückert-Lieder com a Orquestra Gulbenkian, sob a direção de Lorenzo Viotti. Ao longo da sua carreira, Meier distinguiu-se quer em papéis de meio-soprano, quer de soprano dramático, tendo atingido uma enorme notoriedade nesta última categoria. Nascida em Würzburg, iniciou os estudos de canto particularmente, ao mesmo tempo que cantava em coros. Foi em 1976 que decidiu tornar-se profissional, estreando-se na Ópera de Würzburg, como Lola, na Cavalleria Rusticana, de Mascagni. Começou a ser conhecida nos palcos mundiais no início dos anos 1980, após a aclamada estreia no Festival de Bayreuth como Kundry (Parsifal), seguindo-se interpretações marcantes ao longo dos últimos 40 anos.

 

Em Lisboa vai interpretar os Kindertotenlieder e os Rückert-Lieder, de Mahler. Qual é a sua visão destas obras?
Os Kindertotenlieder não são apenas canções terrivelmente tristes. Friederich Rückert, que escreveu os poemas após a morte dos fi lhos, dá-nos também uma outra visão. Estas canções acabam por ter também algo de pacificador. Uma mãe fala das crianças mortas e dessa perda tremenda, mas no final acredita que estão no céu, num bom lugar e a ser bem cuidadas. Os Rückert-Lieder são o ciclo de uma vida. Começam de um modo alegre e a meio de Um Mitternacht, e em Ich bin der Welt abhanden gekommen tornam-se muito mais profundos, transportando-nos para longe deste mundo, para outra dimensão. Mahler conhecia muito bem os poemas e transforma-os em música maravilhosa.

 

A sua carreira está muito ligada a Wagner, mas entretanto já pôs um ponto final em personagens como Isolda e Kundry. Tem saudades desses papéis?
Estou muito contente com o modo como finalizei esses papéis. Considero que as minhas últimas apresentações como Isolda e Kundry foram muito boas, estou orgulhosa por ter terminado esses papéis dessa maneira com essa qualidade. Assim posso olhar para trás com grande satisfação e felicidade.

 

Que outras personagens irá ainda interpretar nos próximos tempos?
Estou no 41.º ano de carreira, portanto não há um longo prazo. Mas continuo a fazer a Clitmenestra da Elektra de Richard Strauss, a Waltraud no Crepúsculo dos Deuses de Wagner e estou a planear a Ortud do Lohengrin para o Festival de Bayreuth.

 

Qual dos papéis wagnerianos constitui o maior desafio e quais foram os seus preferidos?
O maior desafio foi Isolda. Em relação ao que gosto mais, devo dizer que só canto o que gosto! Cada vez que faço um papel, mergulho totalmente nele. Tenho de gostar da personagem mesmo quando é menos positiva. Quando entramos em profundidade na sua psicologia, temos de acreditar nela, de a aceitar a 100%, de encontrar as razões que a levam a agir daquela maneira.

 

Quais são os requisitos mais importantes num cantor?
Saber centrar-se no texto. Não basta entender o texto, é preciso vivê-lo e estar sempre consciente do que estamos a cantar. Muitos cantores esquecem o significado do que cantam, pois ficam demasiado preocupados com a dimensão puramente vocal. É essencial tornar claro o que estamos a dizer, porque cantar é falar através da música.

 

Acha que a abordagem interpretativa do repertório wagneriano tem mudado ao longo dos anos?
Com o tempo tornamo-nos mais maduros, mas é uma mudança gradual. É difícil falar em mudanças nas tendências interpretativas de um modo geral, pois depende muito do maestro. Em relação ao concerto na Gulbenkian, estou muito curiosa e ansiosa por trabalhar com o jovem Lorenzo Viotti. Disseram-me que é um maestro maravilhoso.

 

Com que maestros e encenadores tem sido mais gratificante trabalhar?
Entre os maestros destacaria Barenboim, Muti, Levine, Masella, entre outros. Dos encenadores, Patrice Chéreau foi sempre o rei, um deus! É triste não ver ninguém que siga os seus passos. Sei que é difícil, mas ele era um fazedor de teatro completo, estava totalmente por dentro da psicologia, da filosofia, da história, das diversas formas de arte, de tudo! E era também muito musical. Tenho muitas saudades. Mas claro que há outros bons encenadores, por exemplo Harry Kupfer, Claus Michael Grüger, Luc Bondy…Tive muita sorte em trabalhar com eles.

 

Considera que hoje há um excessivo domínio da personalidade do encenador?
A dimensão visual tornou-se demasiado importante, e não tanto a direção de atores/cantores. Fico mais impressionada quando vejo pessoas a representar e a expressar emoções. Não me preocupo tanto com o cenário, prefiro uma encenação que apele à imaginação e à fantasia do público.

 

Também se dedica ao ensino?
Tenho lecionado masterclasses, mas não sigo o modelo habitual. Tento que sejam mais completas. Trabalho muito sobre o texto com os estudantes e faço trabalho corporal. O meu tópico é o seguinte: a maior parte dos cantores sabe como cantar, mas não o que dizer. Eu tento transmitir-lhes o que dizer.

 

Cristina Fernandes

Público – 6 de abril 2017

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