L’Autre Hiver

Sábado, 12 de Março, às 21h30. Teatro Maria Matos, Lisboa
14 mar 2016

L’Autre Hiver é uma “ópera fantasmagórica” que parte do encontro dos poetas Arthur Rimbaud e Paul Verlaine. Eles são dois viajantes, na ponte de um navio imobilizado nas águas geladas do mar do Norte. O espectáculo começa bem na criação da sua “fantasmagoria”, apresentando um dispositivo vídeo tecnicamente virtuoso, com rostos projectados em manequins que estão dispostos no palco. Estáticas, estas figuras começam a pouco e pouco a abrir os olhos. E olham os espectadores.

O efeito destas “personagens videográficas” é inquietante. Sabemos que não nos olham, mas parecem demasiado reais. Ao mesmo tempo, são como bonecos de feira, pequenos monstros em palco, donde surgem vozes (cada boneco ou grupo tem uma coluna de som atrás de si).
Com estas estranhas figuras cruzam-se depois as duas personagens principais, os poetas franceses Rimbaud e Verlaine, que dialogam no “navio” (no cenário, uma ponte que cruza o palco de um extremo ao outro), numa espécie de tempo suspenso.

O dispositivo é eficaz no início da ópera, mas a verdade é que da inquietação inaugural passamos a pouco e pouco para um cenário estático que se torna cansativo e onde já nada de novo acontece. A ideia é deliberada trata-se de criar uma espécie de “ópera-instalação”. A música é tocada atrás deste cenário, sobrepondo-se a partes vocais e instrumentais pré-gravadas. E surgem os dois poetas, interpretados por duas mulheres, as cantoras Lieselot De Wilde e Marion Tassou. Elas fizeram um belo trabalho vocal. O bonito timbre de De Wilde e a voz mais “atlética” de Tassou aguentaram bem a música atonal de Pauwels que, com algumas excepções, se mantém numa escrita vocal relativamente linear e parece deixar de encontrar soluções dramáticas para as vozes dos poetas.

Apesar de tudo, há momentos fortes: “Negro é o silêncio”, repetem estranhas vozes manipuladas em computador. E perguntam, interrogando o espectador também: “Onde é que estamos?” Essa indefinição do espaço é forte na primeira parte da ópera, até musicalmente, mas vai-se esboroando e perdendo intensidade à medida que avançamos para dentro deste universo.

O que mais limita L’Autre Hiver é sobretudo um libreto que não questiona nada acerca da poesia e se fica pelo fait-divers do encontro entre os dois poetas (o tiro que Verlaine dá a Rimbaud e pedaços da sua relação íntima). A poesia e a sua potência ficam fora de tudo isto. E isso limita o alcance de uma ópera que parte do encontro entre estas duas figuras: o poeta “humano”, Verlaine, e o “mito” Rimbaud.

Há ainda um bom momento numa espécie de ária em que Rimbaud pergunta: “Porque não me mataste?” Mas o drama limita-se à anedota e não sai disso, como não sai o dispositivo instalado em palco. Também a música não questiona o “tu” e o “eu”. Porque “je est un autre” não é limitável a “querer estar noutra pele”. É um desafio da própria escrita, que a ópera não enfrenta como aparentemente poderia fazer. Os fantasmas a certa altura cansam, o terror que aqueles bonecos/monstros “demasiado humanos” inspiram fica macaqueado, as vidas ficam novela da TV e os poetas patéticos, a música deixa de ter soluções para o drama interior onde assentou arraiais. E o barco não se embebeda.

Fica tudo suspenso, sim, mas tudo no lugar certo. Onde poderia haver inquietação profícua resta apenas “o conforto de uma música que no meu tímpano pousa”.

 

Pedro Boléo

Público, 14 Março 2016

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