Jazz em Agosto 2016: «O jazz é um campo vasto de experiências»

29 jul 2016

Em vésperas do Jazz em Agosto 2016, a decorrer entre os dias 4 e 14 deste mês, Rui Neves, o programador do festival, transmitiu ao Diário Digital alguns critérios, expectativas, reflexões e características que fazem deste o mais importante festival de Jazz em Portugal. Tendo a entrevista sido feita por escrito, não deixa de ser curiosa a coexistência de perguntas “sem Acordo Ortográfico” e respostas “com”. Uma metáfora feliz da conjugação de linguagens que sempre constituiu a vitalidade e permanente metamorfose do Jazz.

 

Os músicos escolhidos para esta 33ª edição do Jazz em Agosto são, nitidamente, uma galeria de opções sobre o Presente do Jazz. Porquê esta escolha?

O ato de escolher corresponde a uma capacidade de prever adequadamente o que pode interessar a uma determinada audiência. No caso do Jazz em Agosto, que construiu uma identidade ao longo de três décadas, um objetivo natural de qualquer festival em qualquer área artística, as escolhas retratam a evolução do jazz no Presente como diz, através de músicos criativos que fazem avançar a linguagem, uma imensa floresta de vasos comunicantes, um labirinto de onde contudo se consegue encontrar uma saída.

As escolhas são seletivas, urgentes, diversificadas e fundamentam-se no que se vai conhecendo de recente ao frequentar festivais internacionais do mesmo âmbito e pela audição regular do fluxo editorial em CD, LP, K-7 ou em meios digitais os suportes áudio disponíveis na atualidade. Ler sobre jazz em livros, revistas especializadas, blogues, sites e mesmo consultando o YouTube, é outra forma complementar de conhecimento. O processo de escolha exerce-se em função das características dos espaços dos concertos, no nosso caso o anfiteatro ao ar livre para 1000 pessoas situado na exuberância de cor do nosso jardim e a sala polivalente para 140, mais intimista, bem como considerando a especificidade de cada dia de semana e de fim-de-semana. A continuidade dos concertos programados segue um percurso lógico, tal como num programa de rádio em que se começa de uma maneira e se acaba de outra.

As escolhas do programa deste ano seguem a linha habitual de paridade do jazz Americano e do jazz Europeu, projetos originais e em grande parte inéditos em Portugal, juntando-se três filmes documentais do catálogo RogueArt do produtor Michel Dorbon, convidado este ano, filmes relacionados com artistas que já atuaram em edições anteriores do festival, o contrabaixista Peter Kowald (2002) e o projeto Electric Ascension (2006). O lado teórico da Música assume este ano um plano original através de duas conversas com apresentação de registos escolhidos pelo saxofonista Evan Parker e o musicólogo David Toop, bem como na apresentação do 1º livro sobre o jazz da Noruega de Luca Vitali. No fundo, em cada edição que se sucede do Jazz em Agosto, evidencia-se uma relação interna dos seus conteúdos e a deste ano não é exceção.

 

Marc Ribot ou Peter Evans são músicos que já nos visitaram várias vezes, sempre em contextos diferentes, de cada vez com um projecto novo. No seu entender, o que representa esta ampla variedade de formatos de que é feita a carreira destes músicos?

Temos de facto incidido por vezes em músicos habituais, precisamente aqueles que têm sabido reinventar-se em diferentes contextos, uma qualidade do jazz criativo atual, mas por outro lado trata-se de músicos que têm sido melhor conhecidos em Portugal através do festival, o caso do trompetista Peter Evans que se estreou connosco em 2009 quando surgiu no panorama.

Mas há mais, menciono o saxofonista Mats Gustafsson, o músico que mais tem sido veiculado pelo Jazz em Agosto desde 2004 em diversos projetos marcantes. Marc Ribot é outro caso, com uma carreira mais longa mas não havendo dúvidas sobre o grande papel que tem tido ao lado de John Zorn. Devo também dizer que tanto Ribot como Evans são do tipo de músicos insaciáveis que estão sempre a metamorfosear-se em diferentes projetos e Ribot este ano apresentará também, a solo, um projeto inédito com filmes da cineasta experimental Jennifer Reeves. Peter Evans, pelo seu lado, apresenta um trio colaborativo onde não há líderes, mais uma prova da grandeza deste músico.

 

Eventos como o lançamento do livro de Luca Vitali (sobre o Jazz da Noruega) ou a conversa (em dois dias) entre Evan Parker e David Toop são também reflexo da percentagem de público estrangeiro que este evento capta?

Como já afirmei, interessa-nos profundamente o lado teórico do jazz contemporâneo, o que se faz agora, a sua reflexão, mesmo por caminhos transversos tal como as duas conversas previstas de Evan Parker e David Toop sobre músicas milenárias que se vão perdendo e sobre a eclosão da música improvisada oriunda do jazz de vanguarda e da música contemporânea académica, bem como a divulgação da primeira obra de fundo sobre o jazz da Noruega, de Luca Vitali, tendo ao mesmo tempo a presença de um dos seus mais importantes arautos, o baterista Paal Nilssen-Love, outro habitué do Jazz em Agosto, sempre em fórmulas diferentes. Porém a situação não se relaciona, de todo, com o nosso público internacional, embora ele possa assistir e compreender melhor a mensagem em língua inglesa tal como ela é proferida.

Há alguma percepção da organização sobre o peso desse público estrangeiro na assistência?

Ainda não se fez um estudo conclusivo sobre o público internacional do Jazz em Agosto, mas existe uma perceção que poderá significar cerca de 20% do total de entradas correspondendo ao fluxo turístico de Verão em Lisboa, turistas que nos visitam para ver monumentos e sentir a cidade e que provavelmente nos seus países de origem já têm hábitos idênticos de frequentar festivais e concertos. Temos uma parceria de divulgação com o Turismo de Lisboa verificando que, em conformidade com o aumento de turistas no nosso país, esse aumento também se reflete na afluência ao nosso festival.

 

À semelhança de outros anos, volta a existir um concerto executado sobre filmes (neste caso, dos surrealistas René Clair, Marcel Duchamp e Man Ray). Como interpreta esta vontade recorrente de músicos contemporâneos criarem sons para a vanguarda de outros tempos?

Possivelmente experimentar o que nunca se experimentou até pela maior facilidade que agora existe em concretizar tal propósito. Sempre existiu, afinal, essa relação de música e imagem e esta apropriação de filmes do princípio do Cinema também se explica pelo acesso a que a eles temos, para mais, muitos já considerados obras do domínio público. O caso de obras de Artistas consagrados como René Clair, Marcel Duchamp e Man Ray que, no seu tempo, ousaram transgredir os métodos de filmar da época assume sem dúvida um renovado interesse neste século XXI.

 

Tem uma vasta experiência na programação de festivais, concertos, ciclos… sem ser exaustivo, quais são os critérios que o levam a interessar-se por um dado músico e/ ou projecto e querer incluí-lo em algum dos eventos as que tem estado ligado?

Sem dúvida a sua maestria técnica e de expressão fora dos cânones, a sua apetência para criar algo de original e que possa abrir os horizontes do auditor. No fundo, o bom ouvinte é curioso e quer sempre conhecer o que de novo surge. Eu sempre digo que, pelo facto de não se conhecer um determinado músico, não é razão para o ignorar, devemos forçar essa inércia redutora porque, quem sabe, poderemos gostar dele doravante. O jazz é um campo vasto de experiências com bons resultados porque é um processo de se elaborar música livre, estimulante e atrativa que vai ao encontro das pessoas certas que sabem fruir a diferença.

 

Embora tenha estado fora do processo entre 1992 e 1999, a primeira edição que programou foi logo a segunda, em 1985 (a 1ª foi feita apenas com músicos portugueses), onde actuou a Sun Ra Arkhestra. Em mais de três décadas, o que mudou no Jazz? E na sua maneira de o encarar?

As novas gerações têm sempre algo de novo a aportar ao jazz e é significativa a transição da Era Analógica para a Era Digital em que vivemos; o facto significa novos instrumentos, novos meios, novas formas de inspiração, mas nunca se trata de renegar o Passado, é antes um processo de camadas que se sobrepõem tal como as cidades, num constante melhoramento e num mais alto grau de diversificação. Repare-se no projeto Supersonic, do saxofonista Thomas de Pourquery, sobre a temática de Sun Ra, que se apresenta este ano: algo de renovado a partir de uma personalidade inspiradora sem qualquer trejeito de emulação.

 

Se tivesse oportunidade de ter trazido três músicos que nunca tocaram em Portugal, já falecidos, quem gostaria de destacar?

Sem hesitação: o pianista Sul-Africano Chris McGregor e a sua Brotherhood of Breath, o clarinetista Americano John Carter com o pianista Horace Tapscott e o baterista Finlandês Edward Vesala, com o seu ensemble Sound & Fury, que entretanto faleceram no preciso momento em que planeava apresentá-los pela 1.ª vez em Portugal, respetivamente em 1986, 1991 e 2000.

 

João Morales
Fotografias: Sandra Gonçalves

Diário Digital – 29 Julho 2016

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