Já não sei o que sou, diz a ópera

22 jun 2017

“Olha que isto não é uma ópera”, avisava alguém no foyer do Teatro D. Maria II. Já estávamos de sobreaviso… O compositor Pedro Amaral chamou-lhe “um espectáculo de teatro com partes de ópera”. Mas na verdade este Beaumarchais é bem mais difícil de definir. Em primeiro lugar porque o próprio projecto do encenador Jorge Andrade e da companhia teatral Mala Voadora tem a ver com desencaixar. O autor clássico e as suas peças As bodas de Fígaro, O barbeiro de Sevilha e A mãe culpada são aqui alvo de um trabalho prévio de eliminação de etiqueta, de reescrita e de filtragem. Beaumarchais aparece mesmo em palco, fresco para assar: como um provocador atrevido servindo cervejas aos cantores e aos actores. Os cantores bebem minis enquanto cantam (sacrilégio!), os actores falam por cima da música, tudo ali se desmonta e dessacraliza, logo desde o início, em que uma suposta trompista da Orquestra Gulbenkian (na verdade uma actriz) inicia a comédia. Cortes explicativos, piscares de olho, graças com mais ou menos graça (algumas com menos), pouco importa. Está desfeita a atitude de devoção habitual das salas de ópera ou de concerto.

Mas se fosse só isso, seria simples e podia não ir mais longe. Neste Beaumarchais, para além de uma acumulação (desmontada e colada) de referências históricas, musicais e teatrais, há um outro processo em curso: trata-se de uma operação de deslocamento permanente. O lugar das coisas e o sentido da acção torna-se instável. As intenções de palavras, música e gesto, cruzam-se e confundem-se. Os cantores (que na estreia foram os do 1º elenco) não representam as personagens de Beaumarchais, mas fazem de cantores num estúdio de gravação. Actores fazem de técnicos de som desse estúdio. E ao mesmo tempo são actores, perturbando e insuflando caos na ordem musical definida pelo compositor Pedro Amaral.

Lá atrás, chegada à esquerda do palco, está a Orquestra Gulbenkian, que fica meia escondida. Problema difícil de resolver com uma orquestra tão grande em palco. O lugar parece secundarizá-la, mas a encenação procurou compensar esta dificuldade com interessantes soluções: os actores perturbam a música, mas também a trazem para a frente e a sublinham, em gestos contraditórios. Os actores são ali “técnicos de som”, e a escuta ganha, apesar de tudo, primazia. A comédia de enganos, duplicada, triplicada e desdobrada, potencia ainda toda esta enorme confusão. Mas de repente tudo faz sentido, e o que se foi desarrumando ganha um corpo comum numa reflexão humanista sobre o teatro.

 

Pedro Boléo

Público – 22 de junho 2017

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