Gustavo Dudamel e os seus muchacho(a)s

17 set 2016

Gustavo Dudamel e os seus muchacho(a)s de El Sistema são nossos amigos e conhecidos. Regressaram para mais uma residência na Gulbenkian — a abrir a temporada — que incluiu dois concertos sinfónicos e um com o Quarteto de Cordas Simón Bolívar. O tempo passa. A Orquestra perdeu, entretanto, o adjetivo Juvenil, e o seu titular não desdenha umas cãs na cabeleira, ainda farta e encaracolada (na foto, em junho, em Hollywood). Todos parecem ter amadurecido — emocional e tecnicamente — a ponto de nos brindarem com uma realização transcendente da dificílima “Turangalîla-Symphonie” (1949), de Olivier Messiaen. O que continua chocante é a fraca representação feminina na Orquestra: apenas 12 por cento, o que a aproxima do escândalo da Filarmónica de Viena. Será apenas um caso de machismo sul-americano? Registado isto, acrescento já que ambos os concertos atingiram um nível difícil de ultrapassar na presente temporada. Lisboa deixou de estar no itinerário das orquestras top ten, e tem de se contentar com o excelente quando não pode ouvir o excecional. Três dias após o mesmo concerto nos Proms de Londres, cá experimentámos o acoplamento das delícias orquestrais e cromáticas de Ravel com os ritmos da música venezuelana e brasileira. E se a peça de abertura, “Hipnosis Mariposa” (2014), de Paul Desenne (n. 1959), antigo violoncelista da Orquestra, me pareceu inconsequente — um mero gesto nacionalista em tempo de crise — já as “Bachianas Brasileiras nº 2” (1934) e o nº 10 dos “Chôros” (1926), de Heitor Villa-Lobos encheram as medidas. O chôro ‘Rasga o Coração’, baseado num poema de Catulo da Paixão Cearense (um poeta que os meninos do meu tempo ouviam falar e liam no liceu), começa ao ritmo de um trem, mas torna-se cada vez mais complexo e empolgante, graças à dinâmica intervenção do Coro Gulbenkian. De Maurice Ravel ouvimos a 2ª (e menos popular) das duas Suites “Daphnis et Chloé” (1913) e “La valse” (1920). Magistral a execução da primeira; prefiro, todavia, uma leitura ainda mais nebulosa e derrapante da “Valsa”, como fazia Pedro de Freitas Branco, inultrapassável intérprete de Ravel. O concerto terminou como começara: um tema venezuelano, desta vez num arranjo de José Terencio (em extra). A expectativa era enorme para o 2º concerto, preenchido com a obra magna de Messiaen (nunca ouvida naquele auditório; foi, sim, tocada no Coliseu em 2008 pela SWR Sinfonieorchester Baden-Baden, sob a direção de Sylvain Cambreling). É um dos picos himalaianos da música do século XX, um tratado polivalente e politímbrico, uma síntese sonora de tempo, espaço, energia, vida, amor, criação e morte. A inclusividade (perdida) do Ocidente tratada à moda da estrutura rítmica da música indiana. É também um espinhoso concerto para piano e grande orquestra (uns cento e tal executantes), com importante contribuição das ondas Martenot (Cynthia Millar). A estonteante prestação de Jean-Yves Thibaudet mereceu retumbantes aplausos. Obra para gente nova: Messiaen tinha 38 anos quando iniciou a composição; Bernstein, Rattle e Ozawa mal tinham ultrapassado os 30 quando a dirigiram pela primeira vez, e MTT (Tilson Tomas) e Salonen, nem isso. A “Turangalîla” toca os extremos da vivência humana: é medonha, erótica, extática e sublime. Oiça-se o ‘Jardim do Sono do Amor’ e a ‘Turangalîla 2’ — o coração da sinfonia — e mergulhe-se no oceano atraente mas terrível do sexo. Nem Wagner foi tão longe na ânsia sensual: se o “Tristan und Isolde” é a apoteose do coitus interruptus, a “Turangalîla” é a carnalidade do orgasmo infinito. Com as ondas Martenot (e respetivos altifalantes) à frente da orquestra, não se perdeu uma sílaba do tema do amor; a espessura orquestral transformou o recorrente tema da estátua numa peça mental de Henry Moore. No meio de uma orquestra titanesca, o diminuto Dudamel foi um gigante a extrair as últimas gotas de sangue, suor e esperma desta partitura. A boa notícia é que para o ano há mais.

 

Jorge Calado

Expresso Revista E – 17 setembro 2016

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