Entrevista a Sílvia Pérez Cruz
O Meu Amor É Glória, canção que dedica à sua mãe, avó e irmã- todas de nome Glória-, é escrita em português, tal como Não Sei. Porquê?
Porque normalmente componho em Portugal. Venho duas a três vezes por ano ve ra minha irmã, que vive há 15 anos em Monsaraz. Estamos no campo, a minha filha pode brincar com os seus primos… Toda a gente está feliz, e eu posso tocar. É uma língua de que gosto muito, e às vezes sai. O namorado da minha irmã dizia: “O meu amor é Glória”. A partir disso fui fazer a canção.
A naturalidade com que parece cantar pode vir dos seus pais, ambos músicos?
Eles não eram profissionais, mas o meu pai (Cástor Pérez) tocava guitarra, cantava, compunha. Acho que era o maior estudioso de habaneras, era a sua paixão. A minha mãe (Glória Cruz) estudou História de Arte, tinha uma escola, mas cantava também. Então, a música era mais uma maneira de comunicar. E acho que a melhor. Para mim, é algo muito natural. Claro que dá muito trabalho, mas quando há música é como estar em casa.
É por isso estranho que, a meio do espetáculo, a plateia aplauda de pé? Como aconteceu em novembro no Centro Cultural de Belém?
Foi muito especial. Não estava nada à espera. Era só uma colaboração (no concerto do pianista Júlio Resende). Pensei: que bom, a minha irmã estar cá para ver…
Não cantava fado antes de Lágrima e Estranha Forma de Vida?
Só canto aqueles dois, mas a verdade é que na Península Ibérica as vozes são muito parecidas, os cantares das avós… Os mais conhecidos são o flamenco e o fado, mas há muitos mais. Eu tinha 13 anos quando, depois de cantar num jantar, uma rapariga me passou uma cassete com a Dulce Pontes a cantar Lágrima. Nem sabia o que era.
Quando percebeu que ia fazer o álbum 11 de Novembre (2012), que agora traz a Portugal reinventado com um quinteto de cordas?
Tinha 27 anos quando o meu pai morreu, e foi como se tivesse consciência da vida, que ela se acaba. Fez-me dar conta disto: dedica a tua energia às coisas que são importantes e não te entregues a coisas que não te fazem feliz. Comecei a compor para purgar isto existe? purgar a tristeza, a morte. Por isso pus a data do nascimento (do pai, como título do disco). Porque foi um renascimento para mim. E mesmo que cante a tristeza, gosto de cantá-la com esperança e com um pouco de humor também: rires-te de ti mesma.
E tinha sido mãe há pouco tempo.
Sim, engravidei aos 24 anos.
Foi fácil conjugar a maternidade e a música?
Não. É muito difícil. Mas aprendes. Tens de ir mudando e… dormir pouco. Mas aprendes a aproveitar muito o tempo. Acordas e amamentas enquanto aprendes uma partitura. Fazes a comida, a roupa… Tinha uma hora e compunha, estudava. Acho que a maior virtude que tenho é a concentração. Há pessoas que precisam de um ritual, de um espaço concreto; quando tens crianças, tens de aprender a fazer isso num sítio qualquer. Não esperes o silêncio. E foi difícil também porque não há muitas referências de mulheres com filhos que trabalhem nisto. São homens, os filhos ficam com as mulheres em casa. Custava-me muito encontrar um modelo a seguir e quem me entendesse. Sabia que queria ser mãe, que gosto muito de música; queria que a minha filha tivesse uma mãe feliz, e a música faz-me feliz. Inventei a minha maneira de fazer as duas coisas.
Ouve-se a sua filha no novo álbum, Domus de que também traz a Portugal algumas canções , a banda sonora do filme Cerca de tu Casa, de Eduard Cortés.
Sim, em Verde onde também entra a minha mãe, e em Ai, ai, ai entra ela e os amigos da sua turma.
A Sílvia é protagonista deste musical que conta a história dos que, em Espanha, perderam a casa coma crise (em 2012 eram cerca de cem mil famílias). Como é que Isso aconteceu?
Uma vez juntámo-nos para falar e ele (Cortés) disse-me: “Tenho um projeto. Quero que faças a banda sonora e sejas protagonista.” Eu disse: “A batida sonora sim, mas não sou atriz.” Depois de seis meses, dei-me conta de que era uma ótima oportunidade para aprender e contar uma história com linguagens distintas. Tive muito medo, mas agora alegro-me muito por tê-lo feito.
Como se musica uma história como a que o filme conta?
Centrámo-nos em 2008, nos primeiros que foram despejados. As pessoas viveram-no como um fracasso pessoal. Havia uma culpa muito grande. O filme conta como estas pessoas se aperceberam de que não eram as únicas, não estavam sozinhas. E que era um problema maior do que eles. O que me emociona mais é ver como se saúdam: “Não estás só”, “A culpa não foi tua”. Foi muito bonito e aconteceu. Esta generosidade entre as ressoas salvou muita gente. Sente-se menos a solidão, porque as pessoas vão juntando-se: são muitas solidões. O grande triunfo é a parte otimista do filme,
Sílvia Pérez Cruz nasceu há 33 anos em Palafrugell, Catalunha. Filha de dois músicos amadores, Glòria Cruz e o galego Cástor Pérez, entre os4 e os 18 anos a espanhola estudou solfejo, piano e saxofone. Cantava ocasionalmente na taberna La Bella Lola, em CaLella, com o seu pai. Muda-se para Barcelona e integra vários grupos de música tradicional catalã, folclore ibérico e sul-americano. Destaca-se Las Migas, que fundou e de que fez parte de 2004 a 2011.
Em 2012 lançou o primeiro álbum a solo e como compositora, 11 de Novembre. Em 2014 Lança o disco granada, com Raül Fernandez Miró. No mesmo ano, e em 2015, atua com o pianista Júlio Resende em Portugal, cantando o seu reportório e alguns fados. Este ano lançou o álbum Domus, editado pela Universal, banda sonora de Cerca de Tu Casa, filme de Eduard Cortês ainda sem data de estreia.
Mariana Pereira
Diário de Notícias, 30 Março 2016