Dutilleux, Shostakovitch

25 fev 2017

São concertos como este que provam a mais-valia da Orquestra Gulbenkian – o grande cartão de visita da Fundação. Uma parte do público ficara desapontado com o cancelamento (por doença) da violoncelista Alisa Weilerstein, mas o substituto – o insigne Alban Gerhardt, que toca um Gofriller de 1710 – não foi nada inferior, antes pelo contrário. O que me levara ao concerto era o “Tout un monde lointain…” (1970), para violoncelo e orquestra, de Henri Dutilleux (1916-2013) – uma peça composta para Rostropovitch, inspirada em versos de “Les fleurs du mal”, de Baudelaire. Trata-se de um concertante onírico e mágico, estruturado em cinco partes (com raízes dodecafónicas), que deixou a audiência deslumbrada. Ora lírico ora explosivo, nervoso e palpitante, pontilhista e cantante, apaga-se no fim com o violoncelo em surdina. Nas palavras do solista, “depois da peça mais excitante da noite”, o extra só podia ser Bach. [À mesma hora, no Conservatório Nacional, a grande senhora do violoncelo em Portugal, Maria José Falcão, tocava Schumann, Chopin e Rachmaninov, acompanhada ao piano por Anne Kaasa Infelizmente, não tenho o dom da ubiquidade.] A segunda parte foi preenchida pela “5ª Sinfonia” (1937) de Dmitri Shostakovitch (1906-75), composta imediatamente a seguir à sua condenação oficial pelo regime soviético. A ‘reconversão’ é óbvia: regresso à formalidade dos quatro andamentos, menos excentricidades, fanfarras a gosto, um scherzo que é um convite mahleriano à dança, um largo emotivo e confessional, até à afirmação do homem soviético no esmagador allegro final. O espaço é grandioso, mas as dedadas do compositor estão todas lá (nomeadamente, a troça). É a “resposta criativa de um artista soviético à crítica justa” (sabendo que esta é injusta). Pois tal esquizofrenia musical foi magnificamente realizada pela orquestra, galvanizada pela direção roqueira de Giancarlo Guerrero, em boa hora regressado à Gulbenkian. Um novo diretor musical em perspetiva? Uma coisa é certa: um concerto inolvidável!

 

Jorge Calado

Expresso – 25 de fevereiro 2017

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